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Chapter 9 - Planos: A anatomia de uma traição

Capítulo 9 – Planos: A Anatomia de uma Traição (versão expandida)

O luar negro da Noitosfera vazava pelas frestas do covil, lançando sombras alongadas sobre as ossadas que serviam de pilares ao salão principal. A lamparina central, feita de um crânio preenchido com óleo demoníaco, cuspia chamas tremeluzentes. Cada fôlego daquele lugar era uma palavra maldita entoada no livro da escuridão.

Hanson estava encostado numa das colunas de ossos, esfregando óleo de verme das profundezas nas cordinhas que ofereciam sustentação à couraça de armadura. Cada gota fumegava ao tocar o metal frio, espalhando um cheiro acre, de coisa viva e morta ao mesmo tempo. As paredes respiravam, e o teto gotejava fluido escarlate de veias pulsantes escondidas entre as rochas.

Blade apareceu da escuridão, jogando uma garrafa de licor de sangue coagulado em direção a Hanson.

— Conta mais dessa época de cachorrinho do Tio Olho — provocou, sentando-se num barril de unhas enferrujadas. As pontas se cravaram em sua pele como se estivessem vivas, mas ele sequer piscou.

Hanson pegou a garrafa entre os dentes, arrancou a tampa com um estalo e cuspiu-a de volta para as trevas.

— Ele tinha um ritual — a voz dele saiu rouca, cheia de lembranças. — Toda lua negra, escolhia um servo pra “purificar”. Enchia de magia até quase explodir, depois mandava caçar almas para repor a energia.

Blade ficou imóvel, olhos arregalados, como se tivesse engolido uma larva sem querer.

— Você…

— Três vezes — Hanson ergueu as mangas do coturno, revelando veias negras pulsantes como raízes amaldiçoadas. — Na primeira, matei cem prisioneiros em uma noite. Na segunda, devorei meus próprios soldados. Na terceira…

Ele atirou a garrafa na parede. O líquido incendiou ao tocar as runas. As chamas subiram rugindo, como se comemorassem o horror.

— Matei o capanga favorito dele. Comi o coração enquanto ainda batia. Foi quando percebi que ele gostava quando resistíamos. Fazia o jogo mais divertido.

Nesse instante, a porta rangida se abriu, e Rob entrou, o manto pingando de orvalho tóxico. Seus olhos pareciam duas brasas verdes, fundidas em sombra.

— Tudo pronto. Amanhã mudamos o jogo.

Hanson voltou-se, levantou o machado refletindo o fogo vivo. O metal estava cravejado de olhos costurados, que piscavam lentamente como se estivessem vivos.

— Não é sobre vencer. É sobre lembrá-lo que até demônios podem sangrar.

[Flashback – Dois Anos Atrás: Masmorras do Olho Negro]

As masmorras do Olho Negro eram um labirinto de celas vivas, cada parede pulsante com carne e olhos semicerrados que observavam em silêncio. As veias do chão se retorciam a cada passo, como se sentissem o peso do pecado.

Hanson estava acorrentado, não por falta de força, mas por decisão. Queria que cada segundo ali lembrasse o inferno que soldava dentro de si.

Syphax, capitão novato do cassino e lacaio do Olho Negro, arrastava um prisioneiro cambaleante até a cela. Era um anjo caído — asas amputadas, feridas brilhando como vidro estilhaçado à luz pútrida das tochas.

— O senhor quer que você “convença” esse a doar a alma — zombou Syphax. — Diz que é teste.

Hanson olhou o anjo com um olhar vazio de julgamento. Depois, fitou Syphax.

— Por que eu faria o trabalho de capanga?

Syphax sorriu, dentes afiados como agulhas de agonia.

— Porque, se não ajudar, ele manda eu te fatiar e alimentar os vermes. E eu tenho fome.

Hanson permaneceu calmo. Então, num movimento só, arrancou as correntes da parede com um rugido surdo, agarrou Syphax pelo pescoço e apertou.

— Fique à vontade pra tentar.

Com um puxão violento, enforcou o capitão até quase arrancar os olhos. Depois, jogou-o inconsciente no chão de carne. O anjo rastejou em direção ao portal arcano.

— Fuja — disse Hanson, limpando as mãos na pele viva do chão. — Se ele te pegar de novo, eu próprio te mato.

Fechou as masmorras com um rugido e saiu, desejando acreditar que ainda tinha alma.

[Presente – Covil nas Ruínas de Sangue]

Blade riu baixinho, os dentes manchados de ferrugem.

— Syphax tem medo de você — comentou. — Se te ver no cassino, grita e sai correndo pra se esconder atrás do patrão. Ótima distração.

Rob ergueu a sobrancelha, o olhar fixo no mapa recortado em pele demoníaca.

— E o fragmento do Orbe?

Hanson lançou a Rob um osso tallhado, coberto por runas minúsculas que se mexiam levemente como vermes.

— Terceiro pilar, sala do tesouro. Tem um esquema. Pisa nas pedras erradas, e vira pincel de carne.

Rob virou o osso entre os dedos, os olhos cintilando na penumbra, hipnotizados.

— Como você sabe?

— Eu criei essa armadilha, para os antigos donos — Hanson deu de ombros, frio. — Matei eles depois.

Blade esticou o mapa com cuidado, as sombras dançando sobre a pele enegrecida.

— Todos sabem que matar é fácil. Mas como a gente passa por Syphax?

Hanson golpeou a mesa com a lateral do machado, fazendo uma das velas apagarem com a vibração.

— Você não passa. Distrai. Eu entro pelos túneis. Rob faz o resto.

Os três trocaram olhares. O silêncio era mais pesado que qualquer arma, carregado de promessas que não podiam ser desfeitas.

— E se o Olho Negro sentir algo estranho? — Rob perguntou, a voz vacilando pela primeira vez desde que chegara.

Hanson recostou o machado no ombro. As runas entalhadas em seu cabo brilharam por um segundo, como se tivessem ouvido a pergunta.

— Aí lembramos pra ele por que fomos banidos juntos no mesmo inferno.

As tochas tremeluziram, levando consigo o rastro de um pacto prestes a se selar — ou a se quebrar.

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