Milagre no Front
Capítulo 1: O Voo para o Nada
O zumbido monótono do monomotor era um lembrete constante da distância, não apenas geográfica, mas abissal, que Elias Vianna havia imposto entre ele e o mundo que um dia conhecera. Cada vibração da pequena aeronave parecia ecoar o tremor de suas próprias mãos, que agora descansavam inertes sobre os joelhos. Ele era um homem de mãos firmes, precisas, capazes de traçar a linha tênue entre a vida e a morte com uma confiança quase divina. Mas isso era antes. Antes do dia em que a linha se embaçou, antes que a vida se esvaísse por entre seus dedos, levando consigo não apenas um paciente, mas também a sua própria essela.
Onde antes havia o perfume estéril dos hospitais de luxo e o burburinho de uma carreira ascendente, agora havia apenas o cheiro de querosene e terra seca. Elias observava a paisagem abaixo, um mosaico de verde denso se desfazendo em tons de marrom-avermelhado à medida que se aproximavam da Bacia do Rio Seco. A região era um ponto no mapa que a maioria das pessoas nem sabia que existia, um cinturão de conflitos esporádicos e desastres naturais, onde a pobreza era tão abundante quanto a vegetação selvagem. Era o lugar perfeito para um homem que queria desaparecer. O lugar perfeito para um "front" onde a sua presença, ou a sua ausência, não faria diferença.
Ele apertou a alça da mochila no assento ao lado. Dentro, um kit de primeiros socorros, algumas roupas e um exemplar surrado de Medicina para Áreas Remotas. Os livros de cirurgia cardíaca, os artigos científicos que publicara, os prêmios... tudo fora deixado para trás, empoeirando em caixas que talvez nunca fossem abertas novamente. Elias se perguntava se as pessoas em sua antiga vida sequer notariam sua ausência, ou se sua reputação havia se desfeito tão rapidamente quanto sua própria autoconfiança.
O piloto, um homem robusto com um bigode grisalho, quebrou o silêncio. "Quase lá, doutor. Prepare-se para um pouso um pouco... agitado."
Elias assentiu, mas seus olhos continuaram fixos no horizonte, onde um aglomerado de construções improvisadas começava a surgir. Um hospital de campanha. O Hospital da Missão Esperança, como era chamado. Um nome que parecia uma piada cruel para alguém que havia perdido toda a sua própria.
Ele sentia um vazio no peito, um eco silencioso da vida que havia levado e da vida que havia perdido. Seu objetivo não era salvar o mundo, nem a si mesmo. Era simplesmente existir, sem grandes expectativas ou riscos, sem mais oportunidades de falhar. Mas o universo, como ele viria a descobrir, tinha outros planos para o Dr. Elias Vianna no coração daquele "front" esquecido.
A Fuga e o Confronto Interior
Todos nós, em algum momento, buscamos refúgio da dor, da culpa ou da desilusão. Seja através de uma mudança radical, de distrações constantes ou do isolamento, tentamos escapar daquilo que nos consome. No entanto, a verdade inegável é que a dor não desaparece com a distância. Ela se agacha nos cantos mais profundos de nossa mente, esperando o momento de ser confrontada. O primeiro passo para a cura não é a fuga, mas a aceitação de que o problema reside em nós e que, para seguir em frente, precisamos parar, respirar e começar a encará-lo de frente, por mais assustador que pareça.