Era uma terça-feira com gosto de café requentado e cheiro de contas atrasadas. Beto só queria chegar à padaria. Era um objetivo simples — nobre, até. O tipo de missão que a civilização humana aperfeiçoara ao longo de cinco milênios: ir do ponto A ao ponto B para obter carboidratos.
Mas Beto parou.
Não porque ele quisesse, mas porque havia uma fila. Uma fila de pessoas estáticas, confusas e levemente irritadas, paradas bem no meio do quarteirão, em frente à loja de ferragens do Sr. Manuel.
— O que está acontecendo? — perguntou Beto, tocando no ombro de um entregador de moto que olhava para o chão com uma expressão de descrença quase religiosa.
— A calçada não deixa ninguém passar — respondeu o motociclista, sem desviar os olhos do concreto.
Beto piscou. Seu cérebro tentou processar a frase e retornou um erro 404.
— A calçada… está em obras?
— Não. Está de mau humor. E acho que pediu o número de identificação fiscal daquela senhora ali.
Antes que Beto pudesse perguntar se o motociclista havia inalado muito escapamento, uma voz grave e rouca — como cascalho sendo triturado — ecoou de baixo. Não de um bueiro. Do próprio chão.
— NEGADO! — trovejou o concreto. — PASSO IRREGULAR. ARTIGO 4 DO CÓDIGO DE CONDUTA DO CIMENTO: FALTA DE ESTABILIDADE DO CALCANHAR. RETORNE E EXECUTE O MOVIMENTO CORRETAMENTE!
Uma senhora idosa, segurando uma bolsa de tricô, parecia prestes a chorar.
— Mas eu tenho artrite! — argumentou ela, olhando para o chão.
— PROBLEMA NÃO É MEU, DONA LURDES! ISTO NÃO É SAÚDE PÚBLICA, É UMA CALÇADA PÚBLICA DE ALTO DESEMPENHO! — a calçada vibrou de indignação. — Se você não tem capacidade biomecânica para caminhar com dignidade, sugiro levitação ou contratar um guindaste. Próximo!
Derrotada, a mulher recuou para o gramado do vizinho.
Beto sentiu um suor frio subir à nuca. Olhou para os tênis. Eram velhos. O cadarço esquerdo estava desamarrado. Ele estava prestes a entrar em uma zona de guerra urbana.
Em seguida, o motociclista empurrou sua moto desligada para a calçada.
— PARE! — o som do chão fez vibrar as vitrines da loja de ferragens. — O QUE É ISSO? BORRACHA VULCANIZADA DE BAIXA QUALIDADE? VOCÊ ACHA QUE EU SOU UMA PISTA DE AUTOROMAÇÃO?
— É uma moto, chefe — disse o cara, tentando ser diplomático com o asfalto. — Só preciso estacionar ali em cima.
— IDENTIFICAÇÃO DO VEÍCULO!
— Hum… uma Honda 150?
— NÃO O VEÍCULO, IDIOTA! O SEU! QUERO SABER QUEM ME TOCA! — a calçada parecia histérica. — VOCÊ TEM NOÇÃO DE QUANTOS SAPATOS COM CHICLETE EU AGUENTO DIARIAMENTE? EXIJO RESPEITO! EXIJO UMA SOLICITAÇÃO FORMAL EM CÓPIAS, RECONHECIDA EM CARTÓRIO, PARA RODAS ACIMA DE 14 AROS!
— Mas eu só quero entregar uma pizza…
— A PIZZA TEM VISA? O ORÉGANO ESTÁ DE ACORDO COM AS NORMAS SANITÁRIAS DO MEU CIMENTO ARMADO? FORA! VÁ PARA A RUA, COM OS OUTROS SELVAGENS DO ASFALTO!
A estrada de asfalto, aliás, permaneceu em um silêncio estoico e sublime.
Beto pensou em dar uma volta no quarteirão. Mas isso significava trezentos metros a mais, e ele era brasileiro; a preguiça era maior que o medo do sobrenatural. Respirou fundo, estufou o peito e deu um passo à frente.
Um silêncio sepulcral se instalou. Todos observavam Beto. Ele colocou o pé direito no concreto.
Durante dois segundos, nada aconteceu.
Então, um suspiro profundo — como o de um saco de cimento se rasgando — surgiu do chão.
— Bem, bem, bem… o que temos aqui?
Beto ficou paralisado.
— Bom dia — disse Beto, tentando parecer casual. — Belo dia para ser um… asfalto, hein? Sólido. Plano. Cinza. Muito… cinza.
— Não tente me bajular, bípede — disse a Calçada, irritada. — Sinto a vibração da sua falsidade na sola desse tênis. Espere um momento.
Beto sentiu uma vibração estranha sob o pé.
A calçada estava... o examinando com o olhar?
— Tênis de corrida… marca genérica… amortecimento comprometido no calcanhar direito… Você tem pisada supinada, sabia?
— Eu... eu não sabia — gaguejou Beto.
— Claro que não. Vocês andam por aí tortos, destruindo a integridade estrutural das minhas lajes, e nem sequer mandam um cartão de Natal. Vocês sabem quanto custa um metro quadrado meu? Sabem?!
— Não faço ideia.
— MAIS DO QUE VOCÊ VALE, GAROTO! — a calçada parecia prestes a desabar. — Eu estudei! Eu fui projetado! Eu sonhava em ser piso de museu, sabe? O Louvre! MASP! Eu queria sentir o toque suave de sapatos de couro de bezerro italiano! Mas não… Acabei aqui, em frente à loja de ferragens do Manuel, sendo pisoteado por pessoas que usam CROCS!
A palavra "Crocs" foi pronunciada com tanto desgosto que uma rachadura se abriu perto de um poste de luz.
— Sinto muito pela sua frustração profissional — disse Beto, usando o mesmo tom que usava com seu chefe bêbado. — Mas veja bem, preciso comprar pão. Se eu não conseguir, a economia local sofre. Manuel sofre. O ecossistema urbano entra em colapso.
Houve uma pausa. A calçada parecia refletir a luz.
— Você tem razão. A economia importa. Mas eu sou uma autoridade. Fui fundado pela Prefeitura em '98. Tenho jurisdição! Declaro, por meio deste documento, este trecho de quatro metros como a República Independente do Cimento de Cicero.
— Cícero? Seu nome é Cícero?
— Cícero Concreto da Silva. E para cruzar minhas fronteiras, você precisa passar no teste.
— Que teste?
— O Moonwalk.
Beto olhou para a plateia. O motociclista deu de ombros. Dona Lurdes fez um gesto de "vá com fé".
— Você quer que eu faça o movimento do Michael Jackson?
— A ÚNICA FORMA DE LOCOMOÇÃO QUE RESPEITO! — gritou Cícero, a Calçada. — UM DESLIZAMENTO SUAVE! UM CARINHO NA MINHA SUPERFÍCIE ÁSPERA! ANDAR NORMALMENTE É ATRITO! ANDAR NA LUA É AMOR! DANCE, MACACO, DANCE!
Beto olhou para o céu. Por que ele não tinha comprado uma bicicleta? Por que ele não tinha nascido pássaro?
Sem opções, Beto virou as costas para o destino. Ele recorreu a todo o conhecimento que tinha adquirido em vídeos do YouTube do início dos anos 2000. Arrastou o pé esquerdo para trás, tentando deslizar.
O tênis prendeu no cimento áspero. Ele tropeçou, quase caiu de cara no chão, mas se recuperou girando os braços como um moinho de vento em puro pânico.
— HORRÍVEL! — rugiu Cícero. — PONTUAÇÃO ZERO! ISSO NÃO FOI UM MOONWALK, FOI UMA CONVULSÃO VERTICAL! VOCÊ OFENDEU MEUS ANCESTRAIS, OS PARALELEPINOS PORTUGUESES!
— É difícil fazer isso em cimento áspero! — gritou Beto, perdendo a paciência. — Você é muito poroso!
— VOCÊ ME CHAMOU DE POROSO?! — a calçada tremeu violentamente. Um hidrante na esquina começou a vazar em solidariedade. — AGORA É GUERRA! ATIVANDO O PROTOCOLO DE DEFESA: CHICLETE QUENTE!
De repente, o chão ficou mais pegajoso. Beto tentou levantar o pé, mas sentiu uma resistência absurda. Era como se Cícero estivesse segurando seu tornozelo.
— Você ficará aí até aprender a ser leve! — decretou a calçada. — Vou transformá-lo em uma estátua viva. Daqui a mil anos, os arqueólogos o encontrarão e dirão: "Aqui jaz um homem que não soube pisar com delicadeza."
Naquele momento de tensão absoluta — homem e infraestrutura travando um combate mortal — um novo personagem entrou em cena.
Vindo da esquina, com a calma de quem não devia nada a cobradores, apareceu um cachorro vira-lata. Amarelo. Com uma mancha preta sobre um dos olhos, que lhe dava um ar de pirata.
O cachorro trotava alegremente em direção à Zona de Exclusão de Cícero.
— EI! — gritou a calçada. — VOCÊ AÍ, CACHORRO! PARE IMEDIATAMENTE! ONDE ESTÁ SEU CERTIFICADO DE PEDICURE?
O cachorro parou. Olhou para o chão. Inclinou a cabeça.
— Não me olhe com essa cara de súplica! — Cícero tentou manter a autoridade, mas sua voz vacilou. — Isto é uma ditadura de concreto! Quatro patas pagam imposto em dobro! Usam em dobro! Vão embora!
O cachorro bocejou. Então, com a calma de um monge tibetano, começou a girar em círculos, procurando o lugar perfeito.
— O que você está fazendo? — perguntou Cícero, com o pânico crescendo. — Não… Nem pense nisso… Acabei de ser arrastado!
O cachorro se agachou.
A multidão prendeu a respiração.
— NÃO! PELO AMOR DA ENGENHARIA CIVIL, NÃO! — gritou Cícero. — ISTO É UM CRIME DE GUERRA! ISTO É BIOTERRORISMO! SOCORRO! CHAMEM O ASFALTO! CHAMEM A CALÇADA!
O cachorro fez o que tinha que ser feito.
Foi um ato político.
Um protesto silencioso e fervilhante contra a tirania burocrática.
Ao terminar, o vira-lata raspou as patas traseiras duas vezes — scrrrt, scrrrt — num gesto final de desprezo, e se afastou abanando o rabo.
Seguiu-se um silêncio sepulcral. Beto sentiu a pressão nos pés diminuir. A "cola" invisível desapareceu.
Cícero estava em choque, soluçando baixinho.
— …sujo… Eu me sinto tão sujo… — gemeu o concreto. — A dignidade… se foi… Sou um vaso sanitário… Não sou um museu… Sou uma latrina a céu aberto…
A voz da calçada foi se transformando num murmúrio depressivo até silenciar completamente, afogada em sua própria vergonha.
Beto olhou para o motociclista. O motociclista olhou para Dona Lurdes.
— Aproveite a abertura emocional! — gritou Beto.
A multidão avançou. As pessoas correram em direção a Cícero, ignorando seus soluços baixos. Contornaram cuidadosamente a "oferenda" do cachorro, mas não pararam.
Beto finalmente chegou à porta da padaria. Olhou para trás. A calçada estava silenciosa, vencida pela natureza indomável de um vira-lata cor de caramelo.
Ele entrou na padaria, ofegante.
— E aí, Beto? O de sempre? — perguntou o padeiro.
— Sim. E também um rocambole recheado com creme. — Beto enxugou o suor da testa. — Acabei de ver um império cair. Preciso de açúcar.
Enquanto pagava, Beto ouviu um barulho vindo da entrada. A porta de vidro automática da padaria estava abrindo e fechando freneticamente, batendo contra a própria moldura.
— CRACHÁ! — gritou a porta de vidro com uma voz fina e estridente. — SOMENTE QUEM TEM CRACHÁ E VESTE TRAJE FORMAL PODE ENTRAR! SOU VIDRO TEMPERADO, NÃO A JANELA DE UM BAR!
Beto suspirou, pegou seu pão e foi para os fundos.
— Amanhã venho de paraquedas — murmurou ele. — Definitivamente de paraquedas.
