A chuva fina caía sobre a terra molhada, transformando o chão da floresta em lama. O dia estava prestes a morrer, tingido por um pôr do sol cinzento, que se escondia atrás de nuvens pesadas como luto.
Jin caminhava sem rumo, os pés afundando na terra, o corpo curvado como se o peso do mundo estivesse sobre seus ombros. A adaga quebrada da mãe pendia frouxa em sua mão, arrastando na lama, como um eco de tudo que perdeu.
Então, vozes surgiram entre as árvores.
Risos.
— Ei, ei... olha só o que temos aqui.
Cinco homens de armaduras gastas e olhares duros cercaram Jin. Aparentavam ter enfrentado batalhas, mas suas expressões não carregavam honra — só desprezo. Um deles, com uma cicatriz no rosto e uma maça presa nas costas, apontou para o garoto.
— Esse é o demônio? — cuspiu ao chão. — Dizem que o vilarejo de Eres foi engolido por um monstro… e só restou isso?
Jin não respondeu. Apenas ergueu os olhos vazios. Sem medo. Sem raiva. Sem alma.
— Olha os olhos dele… é como encarar um poço sem fundo. Eu tô dizendo, isso aí não é humano.
— Aposto que tem o diabo no corpo — outro murmurou. — Vamos acabar com ele antes que traga desgraça pra cá também.
E então vieram os golpes.
Primeiro um chute no estômago. Jin caiu, a lama respingando em seu rosto inexpressivo. Depois, vieram os socos, os chutes, as risadas. A adaga da mãe caiu ao chão com um som surdo.
Mas ele não gritou.
Não se protegeu.
Apenas sentiu o peso. O peso que merecia.
> “Se eu tivesse sido mais forte…”
“Se eu tivesse corrido… lutado…”
“Eles ainda estariam vivos…”
— Não sente nada? — disse um dos homens, socando seu rosto. — Nem dor, nem medo? Que tipo de monstro é você?
O sangue misturava-se à lama. Jin cuspia vermelho, mas não emitia um som.
E então, uma voz ecoou entre as árvores:
— Isso é o que vocês chamam de coragem? Espancar uma criança? — disse uma voz feminina, calma, mas carregada de força silenciosa.
Os homens se viraram.
Entre as sombras da floresta, surgiu um grupo de quatro pessoas, em silêncio, como o vento antes da tempestade.
A que havia falado era alta e magra, com cabelos prateados presos atrás da cabeça. Seus olhos dourados — calmos, profundos — fitaram os homens como quem vê algo abaixo da dignidade.
Kaellia, meio humana, meio fada. Líder do grupo. Sua presença era como névoa sobre o campo: sutil, mas impossível de ignorar.
— Ele é um monstro, senhora… — disse um dos agressores. — Só estamos fazendo o que é certo.
— E qual é o seu crime, então? — perguntou Allan, surgindo à direita. Seus músculos pareciam moldados em pedra, a espada gigante apoiada no ombro. Os olhos vermelhos flamejavam. — Covardia?
Ao lado dele, uma menina de cabelos azuis brilhantes e olhos de esmeralda correu até Jin, ajoelhando-se com lágrimas surgindo.
Lyn, a curandeira. Jovem demais para aquele mundo, mas de coração mais maduro que qualquer homem ali.
— Meu Deus… — sussurrou ela, passando os dedos sobre o rosto machucado do garoto. — Uma criança dessa idade devia estar correndo e brincando… e não coberta de cicatrizes…
Por fim, uma figura ficou em silêncio, à sombra de uma árvore.
Saphira.
Tinha cabelos azul-escuros, quase negros, iguais aos de Jin. Os olhos azuis brilharam com uma dor que ela mesma não compreendia. Parecia ser da mesma idade que ele. E mesmo sem conhecê-lo, já sentia como se algo dentro dela estivesse conectado àquele garoto caído.
— Já vi o suficiente. — disse Kaellia. — Vão embora. Agora. Ou se ajoelhem pela última vez.
Os homens não ousaram questionar. Recuaram como ratos diante da presença de lobos. E desapareceram.
Kaellia se ajoelhou ao lado de Lyn e tocou o rosto de Jin, que agora respirava de forma irregular. O selo em seu peito pulsava como uma ferida viva.
— Ele... ele não está nem tentando viver... — disse Lyn, chorando. — É como se tivesse desistido.
Jin ergueu os olhos por um momento, apenas um.
Fixou os de Saphira.
Um segundo.
Dois.
E desmaiou.
Allan o pegou nos braços como quem carrega uma relíquia frágil.
— Vamos levá-lo pro acampamento.
Kaellia assentiu.
— Talvez ainda exista algo dentro dele que possa ser salvo.
Enquanto se afastavam da clareira, a chuva aumentou.
As gotas lavaram o sangue da terra.
Mas não a dor.
E atrás deles, sobre a lama, a adaga quebrada da mãe ficou caída por um instante — até que Saphira a pegou, com cuidado, apertando-a contra o peito como quem segura uma promessa.
O garoto sem emoções havia sido encontrado.
Mas ainda não estava salvo.
Durante dias, o grupo viajou pela floresta densa rumo à capital. Jin era transportado cuidadosamente, ora nos braços de Allan, ora em um pequeno carro improvisado por Lyn e Saphira. O silêncio em torno dele era quase religioso. Cada parada para acampamento era marcada por olhares inquietos.
— Ele não fala... não se move... nem mesmo parece respirar direito — comentou Lyn certa noite, enquanto verificava seus curativos. — É como cuidar de uma boneca de porcelana rachada por dentro.
Saphira ficava ao lado de Jin sempre que podia, observando-o como quem tenta decifrar uma língua morta.
Kaellia mantinha o grupo em movimento, mas às vezes, ao olhar para o garoto, seus olhos dourados perdiam a tranquilidade usual.
— Há uma guerra dentro dele — disse certa vez, enquanto Allan afiava a espada ao lado da fogueira. — E nós só podemos esperar pra ver quem vai vencer.
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Em algum lugar entre a vida e a morte...
Jin se via em pé. Num campo negro, sem chão, sem céu. Apenas o vazio.
— Finalmente acordou, pequeno recipiente.
A voz veio como um trovão, mas também como um sussurro dentro do crânio. À sua frente, ergueu-se uma forma gigantesca, envolta em sombras que se contorciam como serpentes.
Bouros.
Seus olhos vermelhos brilhavam, seu corpo parecia feito de fragmentos de ossos e carne viva, moldado por ódio.
— Esperava mais do menino que ousou me selar. — disse, dando um passo à frente. — Mas ao invés disso, ganhei um morto-vivo de olhos vazios. Uma piada maravilhosa!
Jin não respondeu. Não podia. Seu corpo ali não reagia, mas sua consciência queimava com a presença do demônio.
— Não se preocupe. Eu sou um bom hóspede. — Bouros inclinou a cabeça, sarcástico. — Por isso… como forma de agradecimento, vou te devolver algo.
Jin sentiu um calor repentino no peito. Como agulhas perfurando de dentro pra fora.
— Ressentimento. Culpa. Angústia. — Bouros lambeu os dentes como se provasse cada palavra. — Vai sentir isso até o último suspiro. Porque um monstro como você merece lembrar. Merece sofrer.
A voz se tornou mais baixa. Mais cruel.
— Você selou um demônio… mas também selou o que havia de humano em você. Agora me carrega como uma cicatriz viva. E acredite… — ele se inclinou, perto demais — eu ainda estou aqui.
A escuridão começou a ruir ao redor de Jin. E então, uma nova luz surgiu. Suave. Quente.
Bouros recuou como se algo o repelisse.
— Ela vem aí... tsc. Que farsa melodramática.
A luz cresceu e envolveu Jin, afastando as sombras. E então, do centro dessa luz, sua mãe apareceu.
Vestia roupas simples. Os mesmos cabelos presos em trança, os olhos doces como ele sempre lembrava. Ela sorriu.
— Oi, meu amor.
Jin caiu de joelhos. As lágrimas corriam por seu rosto, mas ele não as sentia. Só via.
— Mãe…
Ela o abraçou, e pela primeira vez em muito tempo, Jin sentiu calor. Algo além do frio do selo.
— Eu senti tanto sua falta…
— Eu sei. Eu sempre estive aqui — ela respondeu, acariciando seu cabelo. — Mesmo quando você não podia me sentir.
Jin ergueu os olhos para ela, confuso.
— Por que eu… por que isso aconteceu comigo?
Ela hesitou. E então falou, com ternura, mas firmeza.
— Porque você carrega dentro de si um poder que muitos desejariam destruir. O poder de comandar os mortos. Aqueles que já foram... você pode chamá-los de volta, guiá-los como um maestro diante de uma orquestra. Esse é o seu dom.
— Maestro… dos Mortos…?
— É um fardo, Jin. Mas também é uma bênção. Você não está condenado a ser uma arma… a menos que acredite que é.
Ele abaixou a cabeça.
— Eu matei… todos morreram… por minha culpa. Eu não consegui salvá-los. Eu não mereço isso.
Ela o segurou pelo rosto. Seus olhos estavam marejados.
— Você fez o que pôde. E ainda está aqui. E um dia... vai entender por quê.
A luz em volta dela começou a enfraquecer. Ela apertou a mão dele.
— Quando tudo parecer perdido… eu estarei com você. Sempre.
Mesmo que não me veja. Mesmo que não me escute.
Eu vou te proteger, quando você mais precisar.
— Eu prometo.
Jin tentou segurar a luz, mas ela se desfez em faíscas douradas ao seu redor.
De volta ao mundo real...
O sol filtrava-se por entre as árvores altas, salpicando o chão do acampamento com feixes dourados. O ar estava úmido, carregando o cheiro de terra e folhas recém-molhadas pela chuva da noite anterior.
O garoto de cabelos escuros abriu lentamente os olhos.
Seu olhar ainda era o mesmo: vazio, fundo, como um abismo que engolia qualquer tentativa de luz.
O som dos pássaros ao longe, o murmúrio de vozes baixas, o crepitar da fogueira. Tudo parecia distante. Irreal. Como se ainda estivesse naquele lugar entre a vida e a morte.
Mas não estava.
Estava ali.
Vivo.
Sentado num leito improvisado de cobertores e panos secos, ergueu lentamente o corpo. E então sentiu.
Algo escorria em seu rosto.
Molhado.
Levou a mão devagar até a bochecha e, ao tocá-la, se assustou.
Lágrimas.
Escorriam em silêncio. Mas seu peito estava oco. Não havia dor. Nem tristeza.
Não sentia nada.
E ainda assim… chorava.
— A-alguém! Ele acordou! — gritou Lyn, correndo até onde ele estava. Seu rosto mostrava alívio, mas também medo.
Ela parou a centímetros dele, observando em silêncio por um instante.
— Você… está bem?
Ele não respondeu.
Seus olhos estavam abertos, mas não pareciam ver nada.
Kaellia e Allan se aproximaram rapidamente. Saphira chegou por último, quase sem respirar. Seu olhar se fixou nas lágrimas dele.
— Ele está chorando… — murmurou.
— Mas ele não parece triste… seu rosto permanece inexpressivo— Kaellia sussurrou, inclinando-se com cuidado.
O garoto apenas olhou em direção a ela, sem dizer uma palavra.
Lyn se ajoelhou ao lado dele.
— Ei… como se chama? Você consegue me dizer seu nome?
Silêncio.
Nenhum som saiu da boca dele. Nem mesmo um gesto. Só aquele olhar profundo… quebrado.
— Ele… ele nem sabe quem é? — Allan perguntou, perplexo.
— Ou talvez só tenha esquecido como se fala com pessoas — respondeu Kaellia, triste.
Saphira se agachou à frente dele, tentando encontrar algo em seu olhar. Algo que talvez estivesse enterrado no fundo.
— Você está seguro agora… tá bem? — disse com um sorriso leve. — A gente não vai te machucar.
Nada.
Mas uma única lágrima escorreu de novo.
Lyn olhou para os ombros e braços dele — marcas, hematomas, cicatrizes ainda frescas.
Ela apertou os punhos, tremendo.
— Desse tamanho, e carrega cicatrizes que nem os guerreiros mais experientes tem... cicatrizes como se tivesse voltado do inferno…
Kaellia pousou a mão no ombro dela.
— Talvez… ele tenha voltado.
Todos ficaram em silêncio por alguns segundos.
O garoto abaixou os olhos. Algo dentro dele ardia. Uma lembrança? Uma sensação?
Mas passou.
Seu rosto permaneceu inexpressivo.
Sem nome. Sem palavra. Sem passado.
E ainda assim, ele estava ali.
Sobrevivente.
Carregando o assasino de seus próprios pais... em seu coração... e a orquestra da morte em sua alma.