LightReader

Chapter 3 - Entre a dor e as cinzas

Dias depois...

A floresta parecia não ter fim. O grupo avançava pelas trilhas pouco marcadas, em direção à capital. A chuva havia cessado, mas o céu permanecia nublado, como se o mundo se recusasse a sorrir.

O garoto caminhava em silêncio, alguns passos atrás dos outros.

Os olhos fixos no chão. Os braços junto ao corpo. A adaga quebrada da mãe pendia em sua cintura, envolta em tiras de couro sujas de sangue seco.

Ele nunca falava.

Nunca olhava nos olhos de ninguém.

Mas o grupo não desistia.

— Você quer um pouco da minha maçã? — perguntou Lyn certa vez, sorrindo gentilmente.

Ele não respondeu. Nem se moveu.

— Posso ensinar umas palavras se quiser — tentou Allan, tentando parecer brincalhão. — Tipo “comida”, “água”... ou até “eu sou forte”.

Nada.

Kaellia apenas observava em silêncio, como se soubesse que pressa não ajudaria.

E Saphira... Saphira era quem mais olhava para ele quando ele não via. Como se tentasse decifrar o que havia atrás daquele rosto sem alma.

Mas o que ninguém via… era o que ele sentia.

A culpa. O ressentimento. A dor.

Bouros havia deixado essas emoções como um presente envenenado — e agora elas cresciam dentro dele como espinhos, sufocando-o.

Era como se cada respiração pesasse toneladas.

Como se cada lembrança fosse uma lâmina em seu peito.

Ele não chorava.

Ele não falava..

Não podia expressar esses sentimentos...

Mas por dentro… ele gritava.

...

O grupo havia parado para descansar perto de uma clareira.

Allan afiava sua espada. Kaellia montava um círculo de proteção. Lyn buscava ervas e Saphira vigiava o garoto, como sempre fazia.

Foi tudo rápido demais.

Do mato, uma criatura saltou — uma fera deformada, com garras múltiplas e olhos que brilhavam como carvões vivos.

— Afastem-se! — gritou Kaellia, erguendo o bastão.

O grupo entrou em combate, concentrado em outra criatura vinda pelo flanco esquerdo.

Foi quando ele ficou sozinho.

A segunda besta avançou direto sobre ele.

Saphira viu e gritou:

— EI! CUIDADO!!

Ela se jogou na frente dele, erguendo a adaga curta que carregava. Mas era inútil. A criatura era grande demais. Forte demais.

Ele a viu ali, na frente dele. Protegendo-o.

E o mundo parou.

Uma memória.

Sua mãe.

“Corra, meu filho. E não olhe pra trás.”

Kael.

“Fique com a mãe! Eu vou com o pai!”

O sangue. O sacrifício. O sorriso frágil de quem amava demais.

Tudo explodiu dentro dele.

— N-não... — ele murmurou, pela primeira vez.

Saphira tentou atacar, mas foi lançada de lado como uma folha ao vento, o corpo se chocando contra uma árvore. Ela caiu de joelhos, tossindo sangue, sem forças para se levantar.

A criatura rosnou e avançou sobre o garoto.

E ele… ficou parado.

O mundo desacelerou.

O som sumiu.

A floresta escureceu, como se um eclipse repentino engolisse a luz do dia.

Saphira, mesmo cambaleando de dor, tentou correr. — "CUIDA—!"

Foi tarde demais.

O golpe veio direto.

Mas não o atingiu.

Uma sombra apareceu antes.

Flutuando. Serena.

Ela.

A mulher de cabelos escuros, olhos que exalavam um amor impossível de apagar. O mesmo sorriso...

o mesmo sorriso de quando ela morreu.

Jin paralisou.

O tempo parou com ele.

— "Mãe...?"

A sombra pairou entre ele e o monstro. E com um gesto silencioso, ergueu o braço. Cordas negras, quase invisíveis, atravessaram o ar.

O monstro se contorceu. Gritou. Implodiu.

Como se tivesse sido esmagado por uma força invisível.

Estava morto.

Mas Jin não sentiu alívio.

Sentiu um abismo abrir-se dentro dele.

Lágrimas desceram pelo rosto sem expressão.

— "Ma... mãe..."

A sombra se voltou para ele, e sorriu.

Mas agora... era um sorriso melancólico.

Triste.

Condenado.

E então ela começou a se dissipar. Lentamente.

Como poeira soprada ao vento.

— N-não... não vai... — Jin sussurrou. Mas não havia voz. Apenas o eco de um vazio desesperador.

E então, a escuridão dentro dele falou.

— Ah, isso sim é ARTE.

Bouros.

A voz reverberou pelas entranhas da alma de Jin, como farpas se espalhando pelas veias.

— Veja você... chorando. Implorando. Tentando se agarrar à uma ilusão.

— Controlando a casca vazia de sua mãe como um brinquedo quebrado.

Jin tentou reagir, mas o corpo pesava como se estivesse afundando em lama.

— Você é o que sempre teve medo de ser. Um monstro.

— Um maestro das cinzas, regendo o silêncio dos mortos.

— Sabe o que falta?

— Um pouco de... tragédia.

— Eu disse que te daria de volta sentimentos. Te dei a culpa. O ressentimento.

— Mas agora... agora é a hora da melhor parte.

— É sufocante viver com a sua tristeza, garoto!

E então ele liberou.

Não foi um grito.

Não foi um colapso.

Foi o silêncio.

O tipo de silêncio que faz o ar parecer pesado, como se estivesse prestes a esmagar tudo.

O grupo olhava para o garoto, sem entender o que havia acontecido...

Jin caiu de joelhos.

Seus olhos estavam vidrados.

Seu rosto, estático.

Mas as lágrimas começaram a escorrer — pesadas, densas, como se cada uma carregasse o peso de uma vida inteira de dor, porém... Agora realmente doía.

Ele não gritou.

Não gemeu.

A tristeza não veio como uma onda.

Veio como um afogamento.

Cada segundo, ele afundava mais.

E mais.

Afundava sem som, como alguém preso sob um lago congelado.

O ar fugia.

O peito apertava.

As mãos tremiam.

A boca se abria, mas nada saía.

Nem uma palavra.

Os olhos ficaram vermelhos, não só de choro, mas de pressão.

Seu corpo começou a tremer como se estivesse febril.

Como se estivesse morrendo por dentro… de novo.

E o grupo apenas... assistia.

Kaellia deu um passo à frente, mas parou.

Allan segurou a espada mais forte, mas não a ergueu.

Lyn levou a mão ao peito, tentando entender o que sentia, mas não se aproximou.

Saphira ficou imóvel.

A mão estendida a meio caminho.

Ela não sabia o nome dele.

E agora… não sabia nem se ele ainda era um garoto.

Todos sentiam.

Mas nenhum sabia como agir.

Porque o que viam ali…

não era só dor.

Era uma alma sendo esmagada em silêncio.

E diante disso…

nenhuma palavra parecia suficiente.

A alma gritava. Mas a boca, não.

Jin estava de joelhos, afundado no chão úmido da floresta.

Suas mãos apertavam a terra como se tentassem se segurar em algo — qualquer coisa que impedisse a queda dentro de si mesmo.

Mas não havia nada.

Nada.

> "Eles se foram."

"Mãe... Kael... Pai..."

"Eu os matei. Eu deixei..."

"Se eu fosse mais forte..."

"Se eu tivesse morrido no lugar deles..."

"Por que estou vivo?"

A mente dele era uma torrente. Imagens se sobrepunham sem lógica:

O rosto da mãe sorrindo.

O sangue em suas mãos.

O sorriso confiante de seu irmão

Seus olhos perdendo o brilho.

O orgulho de seu pai em seus últimos suspiros

O riso demoníaco de Bouros.

O calor do fogo.

O cheiro de carne queimada.

A adaga quebrada nas mãos dele.

A ausência de sua voz.

O peito de Jin doía. Não como uma facada.

Era como se houvesse um vazio sendo preenchido com cacos de vidro.

Ele curvou o corpo, os braços envolvendo o próprio estômago.

O ar não entrava mais direito.

A garganta fechava, sufocando um soluço que nunca saía.

E então —

vomitou.

Tosses roucas rasgavam o silêncio.

A bile e o sangue se misturavam no chão, um reflexo cru da dor que não cabia mais dentro dele.

— Seu corpo não vai aguentar! — disse Lyn, em pânico, correndo até ele com as mãos já brilhando em tom verde-claro.

— Espera — murmurou Kaellia, sem se mover, os olhos arregalados, sentindo o que nem conseguia explicar.

Mas Lyn não parou.

Ela se ajoelhou ao lado de Jin, as mãos trêmulas tocando suas costas.

— Está tudo bem… está tudo bem… — sussurrava com a voz quebrada, ativando um pequeno feitiço de alívio corporal.

A energia da cura tentou alcançar o garoto.

Mas algo nele repelia.

Era como tentar curar uma ferida feita na alma.

O corpo sangrava, sim.

Mas o que o fazia sofrer… era mais profundo.

Jin sentia o toque, mas era como se estivesse distante.

Flutuando dentro da própria dor.

> "Eles não deveriam ter morrido."

"Eu não deveria sentir isso."

"Não posso parar. Não consigo parar."

As lágrimas caíam sem fim.

Mas agora, vinham misturadas com o sangue, o vômito, com a terra, com a vergonha.

Ele não chorava mais por escolha.

Era como se seu corpo estivesse tentando sobreviver à própria tristeza.

E todos…

todos do grupo apenas observavam.

Ninguém tinha palavras.

Ninguém tinha respostas.

Apenas uma elfa, de olhos verdes como esmeraldas, ajoelhada ao lado de um garoto que vomitava e chorava — sem som, sem rosto, sem nome.

Tentando, com tudo que podia, alcançar algo que estava… muito além da cura.

Três dias se passaram desde aquela noite.

Três longos e silenciosos dias.

Após o colapso de Jin, ninguém ousou forçar palavras.

Não houve sorrisos. Não houve conversas.

Havia apenas o som das pegadas no solo, das espadas embainhadas, do vento entre as folhas…

E o silêncio.

Silêncio ao redor do garoto de olhos vazios e alma em ruínas.

Lyn tentava se aproximar vez ou outra, mas ele não respondia.

Kaellia mantinha-se atenta, mas nunca insistente.

Allan, por mais duro que fosse, abaixava os olhos sempre que cruzava com os de Jin.

E Saphira… apenas o observava.

Sem nome. Sem origem.

Apenas… ele.

No terceiro dia, os portões da Capital Bravante surgiram entre as árvores.

Imensos, com guardas fortemente armados e bandeiras douradas balançando no alto.

A cidade era cercada por muralhas de pedra viva, e logo à entrada, um pequeno quartel recebia aventureiros, caravanas e missões oficiais.

O grupo passou facilmente — Kaellia era conhecida ali, respeitada.

Foram levados para uma hospedaria próxima da zona oeste da capital. Um lugar simples, porém confortável, onde teriam descanso antes de serem convocados pela Guilda de Ouro.

Cada um recebeu um quarto.

Menos Jin.

Jin apenas… subiu as escadas, entrou no quarto mais ao fundo do corredor e trancou a porta.

Ele não disse nada.

Não olhou para ninguém.

Nem mesmo respirou fundo.

E não saiu mais.

...

Primeira noite.

O prato de comida deixado na porta ficou intocado.

Segunda noite.

Lyn voltou a tentar bater, sussurrando:

— Está tudo bem… você precisa comer… precisa se cuidar…

Nada.

Nem um passo.

Nem um som.

Terceira noite.

Saphira se aproximou, parou diante da porta e encostou a testa contra a madeira.

— Por que você se tranca? Por que parece que carrega o mundo sozinho?

Ela esperou.

Esperou…

Mas do outro lado —

apenas silêncio.

...

Lá dentro, Jin sentava-se no escuro.

A adaga da mãe em mãos.

Trincada. Gasta. Suja.

Mas única.

E no fundo de seus olhos apagados, uma lembrança voltava todas as noites:

> A sombra de sua mãe, com aquele rosto triste… se desvanecendo na floresta.

O riso de Bouros ecoando como uma maldição dentro do peito.

Jin não comia.

Não dormia.

Não chorava mais.

Mas sentia.

> "É sufocante viver com a sua tristeza, garoto..."

As palavras ainda o atravessavam.

Bouros.

Os gritos.

O choro.

O sangue.

E agora… a culpa de seguir vivo.

Ele se trancou não só por vergonha…

Mas porque temia olhar para fora e ver que o mundo continuava.

Que as pessoas riam, viviam, sonhavam.

Enquanto dentro dele só havia ruínas.

More Chapters