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Chapter 2 - Diante dos Olhos que Tudo Viram.

"Onde estou?” — perguntava-se Rodrigo, ao despertar sem conseguir abrir os olhos.

Não sentia o chão sob o corpo. Nem peso. Nem frio.

Era como se a gravidade tivesse deixado de existir. Como se estivesse flutuando no vazio. Inerte.

Suspenso entre o nada e o nunca mais.

“Será que estou sonhando?”

A pergunta pareceu ridícula assim que ecoou em sua mente.

Sonhando?

Era difícil acreditar nisso quando, segundos antes, ele estava morrendo.

Ou melhor… já havia morrido.

Um som interrompeu o silêncio absoluto.

Uma respiração.

Baixa. Rítmica. Quase fantasmagórica.

Ao mesmo tempo que parecia distante, soava perturbadoramente próxima.

Ele não sabia dizer se era sua... ou de outra coisa.

Algo. Alguém.

Presença e ausência se confundiam.

Então, novamente ele tentou abrir os olhos.

Forçou os músculos, buscou qualquer mínimo movimento.

Nada.

Como se suas pálpebras estivessem costuradas com o próprio esquecimento.

Como se o mundo ao seu redor recusasse existir.

Tentando compreender o que estava acontecendo, Rodrigo vasculhou sua mente em busca de respostas.

Mas tudo o que ela lhe entregava eram fragmentos partidos, borrados...

E então, os últimos momentos.

A dor.

O sangue quente.

A amarra.

A impotência.

O gosto amargo da morte subindo por sua garganta.

“Eu... morri?”

A pergunta se repetia como um eco, mas não trazia consolo.

Não trazia paz.

Só silêncio.

E, por trás desse silêncio, havia uma lembrança específica — mais vívida, mais cruel, mais dolorosa que todas as outras.

Lucius.

Seu rosto surgiu diante da mente como uma queimadura que nunca cicatrizou.

Aquele olhar gélido.

Aquela expressão condescendente.

O sorriso.

Aquele maldito sorriso — cínico, torto, cruel, como se a dor de Rodrigo fosse um espetáculo para ele.

Rodrigo sentiu a raiva ascender, como brasas se reavivando em meio à escuridão.

A imagem de Lucius o fitando, enquanto cada facada atravessava seu estômago, se repetia...

de novo... e de novo... e de novo.

“Logo você estará junto da sua família.”

Essas palavras ditas por Lucius antes das facadas não saíam da mente de Rodrigo.

A princípio, elas causavam exatamente o que ele esperava: raiva e ódio. Rodrigo queria matá-lo, queria vê-lo sofrer. Não conseguiu. Falhou. E agora estava morto, sem ter realizado aquilo que deu sentido à sua vida durante anos. Só restava o rancor — e a culpa. Culpa por ter deixado tudo escapar, culpa por nunca ter conseguido proteger sua irmã, como prometeu quando era criança.

Mas, por mais absurdo que parecesse, no fundo havia também um sentimento diferente.

Uma pequena parte dele sentia um certo alívio.

Rodrigo não conseguia explicar aquilo direito, mas talvez fizesse sentido. Afinal, morrer significava o fim da dor. De toda a raiva acumulada. De toda a solidão. De tudo o que ele se tornou.

Por mais que não tivesse conseguido se vingar, talvez, agora, finalmente pudesse descansar.

E além disso, havia algo que ele nunca admitiria em voz alta, mas que estava ali.

A esperança.

Mesmo que mínima. Mesmo que improvável.

A possibilidade de, de alguma forma, reencontrar sua família do outro lado.

Talvez, morrer não fosse só o fim. Talvez, fosse a única forma de se aproximar novamente das pessoas que realmente amou.

Mas, é claro que isso não aconteceria tão facilmente.

Enquanto ainda imerso em seus pensamentos, Rodrigo tentou mover a mão até a altura do peito.

Nada.

Tentou de novo.

Ainda nada.

Era como se seu corpo estivesse desconectado, como se os comandos da mente não encontrassem mais resposta.

O tempo parecia distorcido ali. Ele não saberia dizer quanto tempo se passou até conseguir, com extremo esforço, abrir os olhos.

E o que viu...

O que viu fez o desespero retornar com força total.

A mesma sensação sufocante de impotência que sentiu ao ver sua família cair morta diante de si.

O mesmo pânico, a mesma dor cega, tomou conta de seu peito.

"Onde estou? Que lugar é esse?"

Ele tentou falar, mas nada saiu.

Sua boca se moveu, mas nenhum som foi produzido.

Ainda assim... sua voz ecoou.

Não pelos ouvidos, mas dentro do próprio espaço.

Como se o ambiente tivesse ouvido seus pensamentos e os tivesse devolvido num eco disforme.

Seus olhos correram, cautelosos, pelo lugar.

Era uma vastidão cinzenta.

Sem paredes. Sem teto. Sem chão visível.

A mesma cor do céu na tarde em que foi assassinado.

Mas diferente da violência dos trovões e dos relâmpagos daquele dia, ali havia apenas o silêncio absoluto.

Não um silêncio qualquer…

Mas um que parecia vazio de vida. Vazio de tudo.

Um silêncio ensurdecedor pairava sobre o espaço cinzento, tornando o ambiente cada vez mais sufocante para Rodrigo.

A atmosfera era úmida, mas não havia água.

Era fria, mas não se sentia vento.

As regras que ele conhecia — físicas, naturais, humanas — simplesmente não se aplicavam ali.

Não havia lógica.

Não havia chão.

Não havia horizonte.

Era como flutuar no meio de um pesadelo sem começo ou fim.

E isso o assustava mais do que a própria morte.

O desconforto crescia. O medo se espalhava lentamente como um veneno.

Aos poucos, o desespero começou a tomar conta da mente de Rodrigo, sobrepondo até mesmo a dor de ter morrido.

“Eu vou ficar aqui para sempre?”, pensou, sentindo o pânico crescer em seu peito.

“Será esse o inferno? O umbral? Sheol? Algum tipo de purgatório?”

A dúvida corroía.

Teria sido julgado e condenado sem nem ao menos perceber?

Estaria já cumprindo uma pena eterna por tudo o que fez?

Enquanto mergulhava nessas perguntas sem resposta, ele sentiu.

Pela primeira vez desde que abrira os olhos, algo mudou.

Uma presença.

Não era som, nem imagem.

Era como uma pressão no ar. Um incômodo sutil, mas intenso.

Como se alguém — ou alguma coisa — o observasse.

Rodrigo congelou.

Não estava mais sozinho.

No horizonte daquela vastidão cinzenta, algo surgiu.

Uma silhueta.

Vinda de um ponto onde não deveria haver nada, ela se formava lentamente, rompendo o vazio com uma presença estranha e inquietante.

Rodrigo reconheceu de imediato.

Era a coruja.

A mesma que ele viu na janela, segundos antes de morrer.

A última coisa que seus olhos registraram antes da escuridão definitiva.

Ela agora surgia novamente, mas havia algo de diferente.

À medida que se aproximava, seu corpo aumentava.

De pequena e delicada, a ave começou a crescer de forma antinatural, desafiando qualquer lógica ou escala.

Seus olhos, negros e profundos como abismos, permaneciam fixos em Rodrigo, como se pudessem ver além da carne, além da mente — direto para a alma.

Instintivamente, Rodrigo tentou se mover. Queria recuar. Correr.

Mas, como antes, nada aconteceu.

Seu corpo permanecia preso, imóvel, como se estivesse enraizado naquele espaço fora da realidade.

Ele não podia fugir.

Não podia se defender.

Não podia fazer nada além de assistir, enquanto a figura se aproximava.

Sempre no mesmo lugar.

O mesmo ponto em que havia despertado desde que recuperou a consciência.

Como se aquele local fosse mais do que um espaço —

fosse uma sentença.

De repente, como se tudo respondesse a um estalar de dedos invisível, ela parou bem à sua frente.

A poucos passos — se é que aquele espaço tinha medidas —, a coruja o encarava. Mas não era mais apenas uma ave.

Não aquela que havia pousado silenciosamente em sua janela momentos antes de sua morte.

Agora, diante dele, ela era imponente. Quase divina.

Seus olhos brilhavam num dourado intenso, quase da cor do ouro puro, como se cada olhar pudesse revelar segredos que nem ele sabia carregar.

Suas penas não eram mais comuns.

Brancas, vermelhas e negras, se misturavam de forma harmoniosa, criando um padrão hipnotizante, ancestral.

E sobre sua cabeça, flutuava uma coroa de ouro.

Não apoiada, mas suspensa — como se gravidade, regras ou lógica não tivessem lugar naquele plano.

Rodrigo sentiu o medo crescer dentro de si de forma descontrolada.

Era instintivo, primitivo.

Algo dizia que aquela entidade não era apenas um animal.

Não era só uma criatura.

Era algo muito maior.

Num ato reflexo, tentou gritar — "Afaste-se! Fique longe de mim!" — mas sua voz não saiu.

A boca se abriu. A garganta se contraiu. Mas nada.

Silêncio.

Apenas o som da própria respiração pesada — ou o que restava dela.

Mais uma vez, ele estava preso.

Não só no corpo, mas no próprio medo.

Mas o que Rodrigo sentia não era exatamente medo da imagem imponente diante dele.

Não era o brilho dourado nos olhos da criatura.

Nem a coroa flutuante.

Nem mesmo a estranheza de seu tamanho ou das penas tingidas de branco, vermelho e preto.

Era o que cada passo dela causava dentro dele.

A cada aproximação, uma lembrança se ativava.

Como se a presença daquela entidade tivesse o poder de arrastar memórias trancadas nas profundezas de sua alma.

Não como flashes rápidos, mas como se ele as estivesse revivendo — com cheiro, som, toque, tudo.

A primeira memória foi a do seu aniversário de onze anos.

Naquela época, a situação da família já era difícil. A crise batia à porta, as contas se acumulavam, e as prateleiras estavam cada vez mais vazias.

Mas seus pais nunca deixaram isso transparecer.

Nunca deixaram que ele ou Luciana carregassem aquele peso.

Rodrigo lembrava com nitidez.

Como qualquer menino de sua idade, ele era apaixonado por super-heróis.

E entre todos, havia um que era seu símbolo de força, justiça e coragem: o Batman.

Seus pais sabiam disso.

Mesmo com pouco dinheiro, mesmo com dívidas se arrastando pelos cantos da casa, eles fizeram o impossível.

Organizaram uma festa temática, improvisada, mas feita com amor em cada detalhe.

O bolo tinha o símbolo do morcego desenhado à mão.

Os copos e pratinhos eram simples, mas todos enfeitados com adesivos que sua mãe colou um a um.

O presente? Uma máscara feita de papelão, recortada e pintada pelo próprio pai, que chegou a ficar acordado de madrugada só para terminá-la a tempo.

Rodrigo, naquela noite, sorriu como nunca.

E por um instante — só por aquele instante —, sentiu-se invencível.

O mesmo sorriso veio agora, involuntariamente, ao reviver aquilo.

Mas foi um sorriso breve.

Frágil.

Porque ele sabia o que viria depois.

A coruja ainda se aproximava.

E com ela... outras memórias viriam.

A lembrança do aniversário foi doce… mas havia uma que se sobrepunha a todas.

O nascimento de Luciana.

Esse sim foi, sem dúvida, o momento mais feliz de sua infância.

Rodrigo ainda se recordava com clareza do dia em que seus pais lhe deram a notícia: ele teria um irmão.

Seus olhos brilharam, o coração disparou. A mente de um garoto de seis anos começou a imaginar tudo que poderia viver com aquele futuro companheiro.

Brincar no quintal, soltar pipa, trocar figurinhas, correr de chinelo pela rua…

Ele sonhou com isso.

Mas então veio a revelação: seria uma menina.

Esperavam que ele ficasse decepcionado. Até seus pais hesitaram ao contar.

Mas não foi o que aconteceu.

Ao invés disso, Rodrigo sentiu algo estranho — e ao mesmo tempo profundo — florescer dentro de si.

Um calor no peito.

Uma vontade repentina de proteger alguém que ele sequer conhecia.

Um instinto.

Na época, ele não soube dar nome àquilo.

Mais tarde, ouviria seu pai dizer:

— Agora que você será irmão mais velho, precisa proteger sua irmãzinha.

Mas a verdade é que ele já queria isso antes mesmo de ouvir aquelas palavras.

Não por obrigação.

Não por dever.

Mas por vontade própria.

Ele queria vê-la crescer. Queria cuidar dela.

Queria ser o herói dela.

Mais do que isso — ele queria ser o muro entre ela e qualquer dor.

E por muito tempo, foi exatamente assim.

Luciana, ainda bebê, segurando seu dedo com aqueles dedinhos frágeis.

Luciana, aprendendo a andar, caindo e levantando, e sempre correndo para os braços dele.

Luciana, rindo, confiante, porque sabia que o irmão mais velho estava por perto.

Seria esse o tal instinto protetor que tanto dizem que os homens têm?

Ele nunca soube ao certo.

Só sabia que ela era o pedaço mais importante da sua vida.

E que tinha jurado, em silêncio, protegê-la a qualquer custo.

Mas falhou.

E essa falha… o destruía todos os dias.

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