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Chapter 3 - Diante dos Olhos que Tudo Viram II.

Os dois cresceram juntos, lado a lado, como se o mundo lá fora não existisse.

Brincavam no quintal, dividiam segredos tolos, riam de qualquer bobagem.

E, com o tempo, não eram apenas irmãos — eram melhores amigos.

Rodrigo era o escudo. Luciana, a luz.

Ele a protegia nas brigas da escola, ela o ajudava com os deveres.

Ele enxugava suas lágrimas, ela o fazia rir nos piores dias.

Viviam como se tivessem sido feitos um para o outro — não como casal, mas como alma espelhada. Como alguém que nasce para dar sentido à existência do outro.

E por um tempo, isso bastava. Isso era o suficiente para Rodrigo continuar.

Mas então, como se o universo tivesse decidido arrancar tudo dele…

Aquela noite chegou.

A noite maldita.

A noite em que tudo foi ceifado.

A noite em que a felicidade virou luto.

A noite em que a promessa foi quebrada, e Rodrigo foi forçado a assistir à queda de tudo que ele mais amava.

Como uma névoa escura invadindo um campo florido, as memórias felizes foram tomadas, engolidas, sufocadas, substituídas por gritos, sangue e morte.

Aquela noite.

A maldita noite que roubou sua família.

A noite que lhe tirou tudo.

A noite que o transformou para sempre.

O estrondo da porta.

Como um trovão dentro de casa, rasgando o silêncio do jantar.

Rodrigo lembra.

Lembra com detalhes.

Os quatro homens invadindo sua casa, encapuzados, os olhos escondidos atrás da covardia.

Lembra do som abafado das botas batendo no chão, das armas reluzindo sob a luz fraca do corredor.

E então — o primeiro tiro.

Não houve aviso.

Nenhuma ameaça.

Apenas o estampido seco e o grito de dor.

Seu pai caiu no chão com a perna atravessada por uma bala.

O sangue espalhou-se rápido, escorrendo pelas lajotas do chão, como se a casa estivesse sendo marcada por um ritual cruel e inevitável.

Rodrigo se via de novo ali.

Paralisado.

Com o corpo tremendo, e a mente em choque, sem entender se aquilo era real ou pesadelo.

Mas então, uma memória esquecida surgiu — algo que até hoje ele não se lembrava.

Sua mãe.

Ela não hesitou.

Enquanto os tiros ecoavam, enquanto o caos se espalhava, ela correu em sua direção.

Não fugiu.

Não se escondeu.

Ela correu para protegê-lo.

Mesmo sabendo o que isso significava.

Ele a viu esticar os braços como se quisesse envolvê-lo, empurrá-lo para longe da linha de fogo.

E por um breve segundo, ele sentiu o calor do abraço que não chegou a acontecer.

E então veio o segundo tiro.

O som foi diferente. Mais grave. Mais próximo.

O impacto fez o corpo dela girar no ar antes de cair.

No peito.

Rodrigo viu.

Com os próprios olhos.

A expressão de dor e amor misturados.

Como se ela ainda dissesse, sem palavras:

"Foge, meu filho."

"Você precisa viver."

Mas ele não fugiu.

Ele apenas gritou.

E aquele grito ainda ecoava dentro dele. Até hoje.

Talvez aquele trauma tenha sido tão insuportável que sua mente, em um último ato de autopreservação, decidiu esconder a lembrança.

Esconder a cena.

Apagar o som.

Silenciar o horror.

Mas agora…

Agora era tarde demais.

A memória havia retornado.

E com ela, as palavras.

As últimas palavras de sua mãe.

Palavras que ecoavam, cortando sua alma com a precisão cruel de uma lâmina:

“Por favor, não faça nada com meus filhos!”

Ela gritou isso enquanto corria.

Corria com o desespero de uma mãe que já não pensava em si mesma.

Corria para protegê-los.

Rodrigo e Luciana.

E então… o estampido.

O som seco e violento do tiro explodiu na sala de jantar.

O corpo dela foi lançado para frente — um baque surdo contra o chão frio.

A bala atingira em cheio o peito.

Rodrigo viu.

Viu o sangue escorrer pela blusa.

Viu a boca dela se abrir, tremendo.

Mas nenhum som saiu.

Só o silêncio.

Os olhos dela, antes vivos, agora começavam a perder o brilho.

Mas mesmo naquela fração final de vida, ela o olhou.

Ela o olhou.

E os lábios, manchados de sangue, se moveram…

Devagar…

Tremendo…

E ele entendeu.

Mesmo sem ouvir, ele entendeu.

“Eu te amo.”

Essas três palavras não foram ditas em voz alta.

Mas naquele momento, gritaram dentro dele.

Gritaram com uma dor mais cruel do que qualquer ferimento físico.

E foi ali, naquele instante, que algo dentro de Rodrigo morreu também.

Seus olhos se encontraram com os de Luciana.

E naquele instante congelado no tempo, Rodrigo viu tudo.

O desespero.

O medo.

Mas, acima de tudo, um pedido mudo por proteção.

Ela não precisou dizer nada.

O olhar de uma criança que confia plenamente em seu irmão dizia tudo:

"Me salva."

"Por favor, me proteja."

E então, algo dentro dele explodiu.

Não havia mais espaço para o medo.

Só o instinto.

Só o impulso.

Ele correu.

Num ato desesperado, irracional, brutal — correu contra os algozes que já se afastavam pela porta da sala, como sombras se dissolvendo no breu.

Saltou sobre um deles, se jogando com força, com raiva, com tudo que tinha.

Foi uma luta corporal desengonçada, suja, desequilibrada — mas ele conseguiu.

Arrancou a máscara daquele que havia disparado contra seus pais.

E então o mundo parou.

O tempo congelou.

O coração quase esqueceu de bater.

Lucius.

O homem que ele sempre chamou de "tio".

Aquele que frequentava sua casa.

Que sorria em churrascos de fim de semana.

Que lhe dava presentes de aniversário.

Aquele que seu pai chamava de irmão.

Rodrigo caiu de joelhos.

Não houve palavras.

Só uma pergunta.

Não dita em voz alta.

Mas que ecoava brutalmente, incessantemente dentro de sua cabeça, como um trovão que não se apaga:

“Por quê?”

A traição não vinha só do sangue.

Ela vinha da confiança.

Do amor que um dia Rodrigo teve por aquele homem.

E agora... agora ele estava ali, manchado com o sangue de seus pais.

Foi então que ele ouviu:

“Precisamos matar os dois. Eles viram meu rosto.”

A frase, dita com frieza e naturalidade, o arrancou de seu estupor como um tapa cruel da realidade.

Rodrigo não teve tempo para pensar — apenas reagiu.

Ele se virou com o coração disparado e correu.

Correu em direção à única pessoa que ainda lhe restava.

Sua irmã.

Luciana.

Ele queria protegê-la.

Abraçá-la.

Cobri-la com o próprio corpo, se fosse preciso.

Mas não deu tempo.

Um tiro.

O estampido cortou o ar.

A dor explodiu em suas costas, violenta, ardente, como fogo rasgando a carne.

Rodrigo caiu.

O chão o acolheu como uma lápide antecipada.

Mesmo caído, ele tentou se arrastar.

Seus braços tremiam.

Seu corpo já não obedecia.

Mas sua mente, sua alma, só tinha um objetivo: chegar até ela.

Luciana.

Mas então… veio o segundo disparo.

E dessa vez, foi nela.

Rodrigo ouviu o barulho seco.

Depois, o silêncio.

Olhou para frente, e viu.

O sangue escorria.

O corpo dela caía.

Os olhos, antes vivos e cheios de medo, agora ficavam opacos, vazios, distantes.

Ela estava indo embora.

Ali, diante dele.

E ele… não pôde fazer nada.

Com o pouco de força que restava, Rodrigo esticou a mão.

Tentou alcançá-la.

Tocá-la.

Salvar o que restava.

Mas tudo que conseguiu…

Foi um sussurro.

Baixo. Fraco. Cheio de dor e arrependimento.

“Me desculpe.”

Essas foram suas últimas palavras antes que a escuridão o tomasse.

Antes que o mundo desabasse por completo.

Rodrigo gritou.

Ou ao menos tentou.

Mas nenhuma voz saiu de sua boca.

Nenhum som. Nenhuma sílaba. Nenhum suspiro.

A garganta seca. O silêncio sufocante.

Ele arregalou os olhos, o coração batendo descompassado, como se tentasse romper o peito.

A coruja estava ali — imóvel, imponente, o encarando com olhos dourados que pareciam atravessar sua alma.

Então, num impulso carregado de desespero e dor, ele formou as palavras com os lábios, mesmo sabendo que não seria ouvido:

— Por quê? Por que você está fazendo isso comigo?!

Era mais que uma pergunta.

Era um clamor.

Era um grito de alguém que já não sabia mais se estava vivo, morto ou condenado à loucura.

Mas não houve resposta.

Nada além do silêncio absoluto que reinava naquele espaço impossível.

Nada além da própria consciência — cruel e implacável — como única companhia.

E foi então que vieram mais lembranças.

Não como flashes. Não como sonhos.

Mas como feridas sendo reabertas.

Como se a própria coruja, com seu olhar severo, cavasse dentro de sua mente as partes que ele tentou enterrar para sempre.

Rodrigo estava preso.

Não por correntes.

Mas por tudo que fez.

Por tudo que não conseguiu impedir.

E a coruja… ela apenas o observava.

Como se fosse o reflexo dos seus pecados.

Agora, as lembranças que surgiam não eram mais sobre infância, família ou dor.

Eram sobre morte.

Sobre sangue derramado pelas mãos dele.

Rodrigo tentou desviar os olhos.

Olhou novamente para a coruja, seu olhar implorando, suplicando, suplicando como uma criança assustada:

"Não. Por favor. Não me mostre isso."

Mas ela permaneceu inabalável.

Inerte, imperturbável.

Implacável.

E então, a primeira cena veio.

Como se sua mente tivesse sido arrancada do corpo e jogada de volta no passado.

Um passado que ele evitava encarar… até agora.

Estavam em um beco estreito de uma comunidade dominada pelo medo.

A noite abafada, o som distante de música alta, e o odor amargo de esgoto no ar.

Ali, ele, Rodrigo, com apenas dezoito anos, segurava uma barra de ferro.

Esperava.

O coração latejando, as mãos trêmulas… não de medo, mas de expectativa.

A vítima era um jovem. Dezenove anos. Magro, com olhar distraído, inocente demais para o mundo em que vivia.

Rodrigo não perguntou nada. Não hesitou.

Acertou a cabeça do rapaz com toda a força.

O som surdo do impacto ecoou em sua mente como um martelo.

O corpo tombou, e ele o arrastou para o matagal como se carregasse um saco de lixo.

Frio.

Focado.

Com raiva nos olhos.

A lembrança se intensificava.

Rodrigo via a si mesmo jogando água gelada no rosto do rapaz desacordado.

Depois, tapas.

Depois, perguntas.

"Você conhece Lucius? Com quem você trabalha?"

Nada.

Negativas.

Silêncio.

Rodrigo não acreditava.

Ele não queria acreditar.

Então, continuou.

Alicate nas unhas.

Socos nos dentes, até eles se soltarem.

Agulhas cravadas sob os dedos dos pés.

Choros. Sangue. Gritos.

Mas nenhuma resposta.

Nenhuma pista.

Nenhuma confissão.

Aos olhos de Rodrigo, isso só podia significar uma coisa:

Mentira.

E então… ele terminou.

Cortou-lhe a garganta.

Simples. Frio.

Assistiu ao sangue escorrer, lento e quente, tingindo a terra como tinta.

E com voz baixa, quase serena, justificou-se:

— Mesmo que você não tenha ligação com o Lucius... você ainda é um criminoso. Então merece morrer.

Essas palavras ecoaram como navalhas na lembrança.

E agora... estavam voltando para ele.

Com o peso de mil lâminas cravadas no peito.

Rodrigo sentiu vontade de vomitar.

De sumir.

De arrancar os olhos para não ver mais nada.

Mas ele sabia.

A coruja não iria parar por ali.

Ela ainda tinha muito o que mostrar.

E ele... muito pelo que responder.

Rodrigo continuou sua jornada sangrenta, seguindo um caminho sem volta.

Torturava. Matava. Sem distinções.

Homens. Mulheres. Jovens. Adultos. Até mesmo adolescentes.

Se cruzassem seu caminho, se parecessem remotamente com o que ele procurava — ou simplesmente estivessem no lugar errado na hora errada —, seriam marcados para morrer.

No começo, havia um propósito.

Lucius.

Era tudo por ele. Por justiça. Por vingança.

Era isso que Rodrigo dizia a si mesmo, sempre que arrancava gritos de dor de mais uma vítima.

E quando a dúvida batia, quando o sangue começava a pesar em suas mãos, ele murmurava:

— Está tudo bem... eles eram criminosos. Ninguém vai sentir falta deles. Só estou fazendo o que o Estado não faz.

Justiça pelas próprias mãos. Justiça feita por um cidadão de bem.

Era assim que ele justificava.

Era assim que ele se mantinha em pé.

Era mentira. Mas era tudo o que ele tinha.

Com o tempo, essa mentira se desfez.

Silenciosa, como uma casca que cai.

E sob ela, Rodrigo viu o que realmente havia se tornado.

Porque, depois de tantos corpos, tantas mortes…

Ele passou a gostar.

A busca por Lucius virou apenas um pretexto distante, enfraquecido pela sombra do vício mais sombrio que um homem pode carregar:

o prazer em matar.

Não importava mais se era criminoso.

Não importava mais se era culpado.

Não importava mais nada.

Rodrigo matava.

Rodrigo sentia prazer.

Rodrigo sorria.

E ele acreditava que aquilo preenchia o buraco dentro do peito.

A ausência da irmã, a culpa pela promessa não cumprida, a dor da traição.

Mas era mentira.

A verdade?

Aquilo estava apodrecendo o que restava dele.

Ele estava se matando — lenta, dolorosa e espiritualmente — a cada nova vítima.

A cada nova noite com drogas.

A cada novo corpo nu com quem dividia a cama, tentando calar os gritos que ainda ouviam dentro dele.

Podre.

Porque sua alma já não reconhecia o certo ou errado.

Apenas o sangue.

Apenas o silêncio que vinha depois dos gritos.

Pobre.

Porque o espírito que um dia foi de um menino protetor, amoroso e sonhador…

Agora era só um vulto. Uma sombra deformada.

Mas ele ainda não sabia disso.

Ou fingia não saber.

E o pior…

O pior ainda estava por vir.

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