Naquela noite, o professor Raul voltou.
Não era comum, mas trouxe consigo algo que deixou o ar da pequena sala ainda mais denso: uma camisa.
Era uma camisa simples, de algodão claro, bem passada, sem manchas. O professor estendeu-a a Olíces, que a recebeu com as mãos trêmulas, como se segurasse algo feito de vidro.
— Para ti — disse o professor, sem cerimônia excessiva. — Tenho outras.
Olíces olhou para a camisa, depois para as próprias mãos, calejadas e marcadas pelo trabalho com couro e linha. Sabia que aquela oferta não era apenas um pedaço de tecido era um gesto de dignidade oferecida de fora para dentro.
Mais tarde, Olíces escreveu uma mensagem de agradecimento. Não sabia ler nem escrever fluentemente, mas traçou as letras com esforço, numa folha dobrada que Maisa guardaria por anos:
"Aceito esta camisa como se fosse tua, professor.
Cuidarei dela como se fosse minha.
Obrigado por ver além da roupa."
Mas cuidar de uma camisa, naquela casa, era um ato de guerra contra a realidade.
Eles não tinham ferro de passar. Lavavam as roupas no rio, com sabão caseiro, e estendiam-nas ao vento salgado. O mar ajudava a limpar, mas também trazia a areia que grudava no tecido molhado. Nos dias de chuva, tudo piorava: a lama subia da estrada de terra, sujava as bainhas, manchava para sempre o pouco que tinham.
Havia roupas que, de tanto uso e tanta lavagem, já não serviam senão para trapos. Muitas eram deixadas de lado, outras remendadas até não dar mais. Olíces quase não usava a camisa do professor. Guardava-a dobrada com cuidado, só para dias especiais — e dias especiais eram raros como chuva no deserto.
Maisa crescia com os olhos cheios do que não podia ter.
Quando saía com a mãe, passava por ruas onde as lojas exibiam vestidos coloridos atrás das vidraças. Parava, sem querer parar, e observava. Às vezes, via roupas estendidas em cordas à venda nas ruas do mercado — vestidos floridos, blusas com laços, saias que rodavam.
Ela então baixava os olhos para o seu próprio vestido, já tão lavado que as cores haviam fugido para algum lugar distante, tão remendado que mais parecia um mapa de ausências.
As pessoas ao seu redor viviam em mundos paralelos.
Uns entravam em táxis, apressados. Outros enfrentavam filas intermináveis de ônibus sob um sol que queimava a pele e a paciência. Crianças choravam de sede, outras sorriam com os lábios rachados, esperando por um socorro que parecia sempre chegar tarde.
Havia caminhos distintos sendo percorridos na mesma rua, sob o mesmo céu.
Alguns iam para o trabalho em escritórios com ar condicionado.
Outros, como Maria, carregavam cestos pesados de verduras por estradas de terra, suando sonhos que nunca secavam completamente.
E no meio disso tudo, Maisa sentia-se como uma ponte entre dois mundos que não se tocavam — o mundo da necessidade e o mundo do desejo, o mundo do mar que limpava e do sol que queimava, o mundo da camisa guardada e do vestido gasto.
À noite, antes de dormir, ela olhava pela janela.
O mar não se via daqui, mas ela sabia que ele estava lá, movendo-se no escuro.
Talvez, pensava, os caminhos não fossem apenas paralelos.
Talvez, em algum ponto distante, além do horizonte, todos eles se encontrassem.
Mas por agora, havia apenas a camisa dobrada no armário,
o vestido desbotado no corpo,
e o silêncio de uma família que seguia caminhando,
um passo de cada vez,
sob o mesmo sol que queimava uns e aquecia outros,
sem perguntar a quem pertencia cada qual.
