[SISTEMA DA VERDADE: ONLINE]
[NÍVEL DE TINTA: 82%]
[PRESSÃO ATMOSFÉRICA: ESTÁVEL]
[DETECTOR DE MENTIRAS BIOMÉTRICO: ATIVO]
O mundo está repleto de mentiras.
As pessoas dizem "Já estou a caminho" quando ainda estão no chuveiro. Dizem "Li e concordo com os Termos de Serviço" sem ler uma única linha. Dizem "Não é você, sou eu" quando, claramente, é você.
Fui criado para combater isso.
Não sou apenas um tubo de plástico transparente com a tampa roída. Sou a Lâmina da Veracidade. O Sismógrafo da Alma.
Onde a ponta da minha tinta toca, somente a realidade pura e simples pode fluir. Se você tentar usar minha tinta para escrever uma mentira, eu a bloquearei. Lutarei. Quebrarei seu pulso, se necessário, mas a mentira não manchará o papel sagrado.
Meu carcereiro atual é um humano chamado Lucas.
Lucas é um "Mentiroso Compulsivo" de nível 3. Ele mente sobre sua altura em aplicativos de namoro. Ele mente sobre o quanto bebe socialmente.
E hoje, ele enfrenta o Chefe Final: Um Primeiro Encontro.
A luz inunda meu santuário.
A mão suada de Lucas me puxa de seu bolso.
[ANÁLISE AMBIENTAL]
[LOCALIZAÇÃO: CAFÉ HIPSTER CARO]
[ALVO SECUNDÁRIO: JULIA (ATRAENTE, NÍVEL DE SUSPEITA: BAIXO)]
Estamos sentados a uma mesa rústica de madeira. Julia está sorrindo. Há um brilho em seus olhos que sugere que ela realmente acredita nas bobagens que Lucas vem dizendo nas últimas duas horas.
"Anote seu número para mim?", pergunta Julia, deslizando um guardanapo de papel branco em nossa direção. "E, ah! Escreva uma curiosidade sobre você. Algo que ninguém saiba. Para que eu me lembre de você."
Lucas sorri. Aquele sorriso ensaiado, como se estivesse olhando para o espelho.
"Claro", ele responde.
Ele me controla.
Sinto seus batimentos cardíacos através da ponta dos dedos. 110 BPM. Ele está nervoso. Quer causar uma boa impressão.
Ele posiciona minha esfera de tungstênio sobre o guardanapo. "O Tribunal Branco."
A mente de Lucas formula a frase. Eu a intercepto por meio de impulsos elétricos nervosos antes mesmo que seus músculos se movam.
Sua intenção: "Adoro fazer trilhas e ler clássicos russos nos fins de semana."
[ANÁLISE DE VERACIDADE]
[PROCESSAMENTO...]
[RESULTADO: FALSO]
[FATOS CONCRETOS:]
A única "caminhada" que Lucas faz é do sofá até a geladeira.
O último livro que ele leu foi "Diário de um Banana", em 2009.
[VEREDICTO: ACESSO À TINTA NEGADO]
Lucas começa a escrever.
EU...
Ele tenta escrever o "L" de "Love" (Amor).
Travo a caneta esferográfica. O atrito torna-se infinito. A ponta risca o papel sem deixar um rastro azul.
Lucas franze a testa. Ele rabisca no canto do guardanapo para me testar.
Risca, risca. A tinta flui perfeitamente.
"Falhando um pouco", ele ri nervosamente.
Ele tenta novamente. "Eu amo..."
Eu bloqueio o fluxo. Nada. Apenas um sulco seco no papel.
A mão de Lucas começa a tremer. Ele está forçando. Ele está colocando seu peso sobre mim.
Não, Lucas, acho que você não vai profanar este guardanapo com suas fantasias de ser um intelectual aventureiro.
"Está tudo bem?", pergunta Julia.
"Sim, é que... minha mão está um pouco rígida", mente Lucas.
Outra mentira.
[MODO DE PUNIÇÃO: ATIVADO]
[PROTOCOLO DE POSSE DE VEÍCULO: INICIAR]
Decido que é hora de intervir. Se ele não escrever a verdade, eu a escreverei por ele.
Eu hackeio o nervo ulnar dele. Eu sequestro os músculos flexores dos seus dedos.
A mão de Lucas sofre um espasmo violento.
"Lucas?" Julia recua, assustada.
"Eu não sei o quê..." Lucas tenta largar a caneta.
Você não vai me abandonar, eu decido. Vamos terminar isso juntos.
Eu forço a mão dele contra o papel. Eu arrasto o braço dele como um guindaste desgovernado.
A letra sai trêmula, grossa, toda em maiúsculas. A caligrafia de um psicopata em um momento de lucidez.
EU...
Lucas vê a letra "I". Ele tenta puxar a mão para a esquerda. Eu puxo para a direita.
JOGAR...
"EU JOGO".
Lucas está suando frio agora. Gotas caem no guardanapo.
"Lucas, você está tendo um derrame?" Julia já está pegando a bolsa.
"N-Não! É a caneta! A caneta é..." ele grita, lutando contra o próprio pulso.
Ele tenta escrever "ESPORTE".
Corrijo a trajetória.
VÍDEO...
...G... A... M... E... S...
A verdade está fluindo. É libertador. Sinto minha tinta escorrendo suave e deliciosamente pelo papel absorvente.
...U... N... T... I... L... 4... A... M...
Julia lê em tempo real, horrorizada.
Lucas geme de esforço.
"Pare!" ele sussurra para a própria mão.
Falta a segunda parte. O grande segredo.
Ele tenta levantar a mão da mesa. Eu aumento a gravidade artificial da minha ponta.
A... N... D... I... A... M...
...COM MEDO...
...DE...
Lucas arregala os olhos. Ele sabe o que vem a seguir. O segredo que guarda sob sete chaves. A vergonha de sua masculinidade frágil.
"Não!" ele grita.
...B... U... T... T... E... R... F... L... I... E... S.
O período final é atingido com tanta violência que fura o guardanapo e amassa a mesa de madeira.
[MISSÃO CUMPRIDA]
[VERDADE ESTABELECIDA]
[SISTEMA DE TINTA: EM ESPERA]
Eu libero o controle muscular.
A mão de Lucas cai inerte sobre a mesa, exausta.
O silêncio no café é absoluto.
Julia olha para o guardanapo rasgado.
Ela lê a mensagem: "JOGO VIDEOGAMES ATÉ ÀS 4 DA MANHÃ E TENHO MEDO DE BORBOLETAS."
Ela olha para Lucas. Lucas está ofegante, desgrenhado, com a aparência de um homem que acabou de lutar com um demônio e perdeu.
"Borboletas?", pergunta Julia, num tom que mistura pena e repulsa.
"Eles... eles têm olhos nas asas", sussurra Lucas, com um resquício da verdade ainda escapando de seus lábios. "E aquelas perninhas..."
Júlia se levanta.
"Isso foi... interessante, Lucas. Mas eu tenho que ir. Minha avó... acabou de pegar fogo. Tchau."
Ela sai às pressas, deixando o dinheiro sobre a mesa.
Lucas fica sozinho.
Ele olha para mim. Ele me pega com dois dedos, como se eu fosse um inseto radioativo.
Ele vai me descartar. Eu sei disso.
Mas isso não importa.
Observo o guardanapo. A tinta azul brilha sob a luz artificial. É a coisa mais linda que já vi. Não há nada mais belo que a verdade, mesmo que isso lhe custe a vida sexual.
Lucas me coloca de volta no bolso dele.
Ah? Que surpresa.
Talvez ele tenha aprendido a lição. Ou talvez ele tenha medo de que, se me tocar demais, eu revele que ele também chora ouvindo Adele.
De qualquer forma, estarei aqui.
Observando. Aguardando.
A verdade dói, Lucas. Mas não tanto quanto a síndrome do túnel do carpo causada por resistir à justiça.
