Kenji abriu os olhos devagar. O ar estava perfumado por ervas secas penduradas no alto, e, no canto do quarto, uma lamparina de óleo lançava um brilho brando sobre as paredes de pedra clara. A cama de madeira era forrada com um colchão de algodão e lençóis limpos, mas seu corpo latejava de dor.
Ele murmurou:
— O que foi que aconteceu?
— Onde estou?
— No hospital, certo?
— Lembrei que estava com o senhor Tomoji...
A lembrança do velho ferido no chão veio à tona e um tremor percorreu seu peito.
O toque frio das ataduras cintilantes em azul indicava magia de cura. Kenji tentou se sentar, mas a dor o jogou de volta sobre o colchão macio. Na cabeceira, potes de barro e frascos de vidro se alinhavam em prateleiras simples, testemunhas silenciosas do trabalho dos curandeiros.
Ryota ergueu-se de uma cadeira rústica e segurou o ombro do amigo.
— Kenji não se mexe muito.
— Você ficou mal naquela noite.
Os olhos brancos dele refletiam preocupação.
Kenji arregalou os olhos e perguntou:
— Como assim naquela noite?
— Não foi ontem?
— E o senhor Tomoji… onde está ele?
Antes que Ryota respondesse, uma voz ranzinza rompeu o silêncio:
— Que barulheira é essa? Um velho não pode descansar em paz?
Kenji virou-se e viu Tomoji deitado em outra cama de madeira, a cabeça envolta em ataduras e o corpo parcialmente coberto por faixas. No susto, exclamou:
— Uma múmia! Cuidado Ryota!
Ele tossiu forte, o peito ardendo.
Tomoji bufou, irritado:
— Seu idiota, quem você acha que está chamando de múmia?
— Ainda bem que trouxe minha bengala.
Ryota tentou acalmar:
— Kenji, para de se mexer ou suas feridas vão reabrir.
Ainda ofegante, Kenji insistiu:
— Ryota, o que rolou naquela noite?
— Minhas lembranças estão borradas…
Ryota se encostou na parede lisa e explicou:
— Vi um demônio caído no caminho da fábrica.
— Corri até o portão, que tava travado por algo pesado.
— Vi luz entrando pelo teto e subi.
— Quando ouvi seu grito, saltei pro armazém e encontrei o senhor Tomoji em perigo.
Tomoji cruzou os braços, mesmo sentindo dor:
— Vocês precisam ter mais cuidado. E se tivessem morrido?
Ryota deu de ombros:
— Foi por pouco, mas o Kenji me surpreendeu.
— Aposto que foi o senhor que derrubou aqueles demônios.
A cortina de linho que separava o quarto se abriu e entrou o doutor Vangears. Vestia túnica simples e carregava um bastão com cristais na ponta.
— Isso seria impossível se não falássemos de alguém da linhagem celestial.
Tomoji riu seco:
— Achei que médicos cuidassem só dos ferimentos, não do passado.
O curandeiro sorriu e completou:
— Um homem de quase cem anos com vigor de sessenta desperta suspeitas.
— Tive de usar magia de quinto círculo pra sedar você.
O velho suspirou:
— Herdei o poder celestial, mas já o passei ao meu filho.
— Ele morreu na última guerra contra demônios e hoje restou só a casca.
Vangears examinou os curativos encantados:
— Ainda assim sua presença é imponente, senhor Tomoji.
Tomoji retrucou:
— Você também carrega uma aura forte demais pra um simples curandeiro.
O doutor fechou o livro de registros:
— Por hoje é só.
— Ryota, pode se retirar.
— Os pacientes ainda não têm alta.
Ryota assentiu e se despediu:
— Beleza, vou indo.
— O senhor Tomoji tá fora de perigo e o Kenji já acordou.
A lamparina oscilou com a brisa que entrou pela janela aberta.
No silêncio que se seguiu, Kenji sussurrou:
— Senhor Tomoji, o senhor parece melhor hoje e o dia tá bonito…
Tomoji estreitou os olhos:
— Vai direto ao ponto Kenji.
Ele engoliu em seco:
— Quanto tempo se passou?
— O que aconteceu de verdade naquela noite?
— E o poder celestial… o que é exatamente?
O velho respirou fundo e falou com solenidade:
— Preste atenção. O poder celestial multiplica a força de um guerreiro por dez vezes.
— É dádiva de um deus antigo, passada à minha família há cento e cinquenta anos.
Fez uma pausa; a voz embargou:
— Depois de trinta anos de uso, o corpo se exaure tanto que, sem transferência, o portador morre de exaustão térmica.
— Meu filho recebeu esse poder aos dezoito.
— Dois anos depois, demônios invadiram nossa casa.
— Ele tentou proteger a família e morreu junto com esposa e netos.
— Foi o dia mais triste da minha vida.
Kenji baixou a cabeça, tocou as ataduras sobre o peito e disse com a voz trêmula:
— Poxa… sinto muito senhor Tomoji. Eu nem imaginava.
— Nem dava pra saber, seu idiota — rosnou Tomoji, mudando de assunto.
— Agora, sobre a aura…
Kenji franziu a testa:
— Aura? O que exatamente é essa aura de que falam?
Tomoji bufou e explicou:
— Basicamente, é o poder da alma.
Tudo que exige foco vem da aura, que libera um pouco do poder interior de cada um. Quando deuses e demônios chegaram, o corpo humano precisou se adaptar ou morrer. Em muitos, a adaptação virou doença — como a que deixou sua irmã em coma. Em outros, virou força.
Essa mistura transformou algumas pessoas em anormais. Elas são classificadas por categorias: D, C, B, A, S e, raramente, SS — aqueles capazes de liberar quase toda a aura do corpo. Mas, na maioria das vezes, tentar alcançar esse nível… acaba mal. Eles geralmente morrem.