As nuvens se moviam pesadamente acima das montanhas ao leste, carregadas de sombra e silêncio. Atrás da floresta, por entre troncos retorcidos e pedras cobertas de musgo, uma presença se erguia — algo que parecia observar o caos da fazenda à distância, oculto pelo nevoeiro e pela vegetação quebrada.
Seus olhos, vermelhos como brasas enterradas na escuridão, brilharam em meio à penumbra. Eram diferentes dos outros — mais profundos, mais vivos... como se queimassem de ódio e fome. O terceiro minotauro, maior que os dois anteriores, possuía chifres ainda mais longos e curvos, com pontas que pareciam ter sido banhadas em sangue. Sua pele era uma mistura grotesca de couro espesso e carne viva, marcada por símbolos demoníacos que pulsavam como veias abertas.
A boca, cheia de dentes assimétricos, se movia como se mastigasse algo invisível. Um colar feito de ossos humanos pendia em seu pescoço largo. Seus cascos afundavam na terra como se o chão o rejeitasse. Um grunhido baixo escapou de sua garganta, fazendo pássaros próximos fugirem em desespero. Ele observava. Esperava. Como se calculasse o momento perfeito para descer sobre os vivos.
Enquanto isso, no que restava da fazenda, Ryota limpava o sangue da lateral da boca com o dorso da mão. O machado do segundo minotauro estava fincado ao lado de um celeiro carbonizado. Kenji se aproximou, ajudando o fazendeiro a se levantar, enquanto a esposa do homem e uma criança se escondiam ainda sob o feno.
— Vocês estão bem? — perguntou Kenji, tentando não deixar a tensão transparecer em sua voz.
O fazendeiro assentiu, com o rosto arranhado e as roupas sujas de terra e sangue.
— Sim, graças a vocês dois... Muito obrigado, agora podemos ir para a cidade nos abrigar, mas é vocês?— olhou em volta, confuso — vocês não vêm com a gente?
Kenji se virou com seriedade no olhar.
— Ainda não acabamos. Temos... assuntos pendentes aqui.
Ryota cruzou os braços, o olhar fixo nas árvores além da plantação.
— Acredito que algo pior esteja vindo. Se não impedirmos agora, pode chegar à cidade.
O fazendeiro respirou fundo, grato, mas preocupado.
— Entendo. Bom... obrigado, de verdade. Um dos estábulos sobreviveu às chamas. Ainda há dois cavalos vivos. Pegarei um deles pra puxar a carroça e fugir com minha família. O outro... vocês podem usar quando terminarem. Se conseguirem, voltem com vida.
Ryota assentiu respeitosamente.
— Agradecemos. Vá rápido. E não pare até alcançar a estrada principal.
Com o fazendeiro se afastando, puxando sua família com urgência, Kenji se virou para Ryota, ainda tentando entender tudo o que viu.
— Ryota... Como isso aconteceu, afinal de contas?
Ryota fechou os olhos por um instante e respondeu com voz firme.
— Quando derrotei o primeiro, achei que estava tudo resolvido. Mas ao correr pra ajudar o fazendeiro... fui surpreendido. O segundo minotauro apareceu do nada, sem emitir um único som.
Ele apontou para um ponto no chão, onde havia uma fenda profunda.
— Lançou o machado de longe, rápido como uma flecha. Eu tive só um segundo pra reagir. Usei o gelo pra criar um escudo na frente do corpo, cruzei os braços na altura do peito e congelei tudo até os ombros, tentando absorver o impacto.
Kenji arregalou os olhos, surpreso.
— E mesmo assim...
— ...Mesmo assim, fui arremessado como se fosse uma criança — completou Ryota, com um leve sorriso cansado no rosto — O chão rachou. Quase não levantei a tempo. Mas... eu já esperava que não fosse o último.
Kenji olhou para a floresta ao longe, sentindo um calafrio percorrer sua espinha.
— Então o que estamos esperando?
— Ele está nos observando... — murmurou Ryota — Eu consigo sentir.
A sombra do terceiro monstro continuava parada entre as árvores, o olhar demoníaco fixo nos dois guerreiros. A verdadeira luta estava prestes a começar.
O silêncio se rompeu com um estalo seco vindo das árvores. Galhos altos se curvaram, folhas voaram como se varridas por uma ventania invisível. E então, ele apareceu.
Saindo por entre as sombras da floresta, o verdadeiro minotauro — o original — se revelou.
Seus olhos ardiam em vermelho carmesim, ainda mais intensos que antes. Cada passo fazia a terra tremer, e sua presença parecia distorcer o ar ao redor. Os chifres agora estavam envoltos em uma energia sombria e densa, quase líquida, que escorria como fumaça negra. Os músculos pulsavam sob a pele escura, e seu corpo inteiro parecia envolto em uma aura pulsante, que vibrava como uma melodia sinistra de poder.
A pressão mágica invadiu a fazenda como uma tempestade.
O chão rachou em fissuras finas. O ar ficou pesado. Pássaros fugiram em desespero. A grama queimava ao toque de sua energia.
Kenji deu um passo para trás, o suor escorrendo pela testa, e os olhos arregalados.
— Ele... é um monstro... — murmurou, em choque.
— Jura? Nem percebi, seu idiota — respondeu Ryota, com um sorriso nervoso, embora tremesse dos pés à cabeça.
A criatura parou diante dos dois. A voz que saiu de sua garganta era grave, arrastada e ao mesmo tempo zombeteira. Sua boca se moveu devagar, como se nunca tivesse usado a fala antes.
— Que estranho... — disse o minotauro, encarando Ryota com desdém. — Achei que aquele que derrotou meus clones seria ao menos interessante de se enfrentar.
Ryota arregalou os olhos, surpreso ao notar que o monstro falava. Deu um passo à frente, cerrando os punhos.
— QUEM É VOCÊ?! — gritou.
O minotauro deu uma risada rouca e profunda, quase como o eco de uma caverna viva.
— Vocês não merecem resposta nenhuma de um ser como eu... — ele pausou, abrindo os braços lentamente — ...porém, mesmo assim irei explicar. Considere isso uma recompensa... por não terem morrido diante dos meus clones.
Kenji apertou o punho, tentando manter o foco mesmo com o coração disparado. A cada palavra daquele monstro, o medo crescia.
— A verdade é que fui... digamos, agraciado com a maldição da Lady Rannya — disse o minotauro, lambendo os lábios com a língua cinzenta e grossa. — A maldição da Gula. Quanto mais humanos eu devoro, mais forte me torno. E quanto mais forte eu fico... mais clones posso criar.
Kenji avançou um passo, confuso e suando frio.
— Mas... e a manada? Todos falaram de um exército inteiro de minotauros. Aqueles que destruíram as fazendas...
O monstro sorriu. Um sorriso que revelava dentes pontiagudos, sujos e grandes demais para caber naquela boca.
— A verdade... — começou ele, inclinando levemente a cabeça como um predador curioso — ...é que nunca existiu uma manada. Nem exército. Tudo que vocês viram... sempre fui eu. Aquele que vale por um exército inteiro.
O silêncio caiu como uma lâmina no ar. Kenji e Ryota engoliram seco ao mesmo tempo. A verdade era sufocante.
E então... o mundo pareceu congelar.
Em um único instante, o minotauro desapareceu da posição em que estava.
Um clarão de energia explodiu à frente deles — e lá estava ele. Tão rápido que nem seus olhos puderam acompanhar. Seu corpo gigantesco agora à frente dos dois, a mão envolta em magia negra erguida como uma sentença.
— Mas nada disso importa — sussurrou o monstro. — Porque vocês foram declarados mortos no momento em que eu cheguei aqui.