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Chapter 1 - Temporada 1:Capítulo 1: Lembranças do Mar e da Escada

O cheiro de sal ainda me visita nos sonhos.

Antes de ser coração partido, antes de conhecer Josué, eu era apenas Maisa — uma menina cuja vida se equilibrava entre a pobreza concreta e a imensidão azul do mar.

Vivíamos numa casinha de madeira que rangia ao vento, eu, meus pais e meus dois irmãos mais novos. Éramos felizes, do jeito que se pode ser feliz quando a fome é uma visita conhecida e os sapatos um luxo de dias bons. Ia para a escola às vezes descalça, outras vezes com sandálias rotas que os dedos insistiam em descobrir. Minha mãe, Maria, costurava remendos invisíveis no uniforme, e meu pai, Olíces, sorria mesmo quando o dia não dava razões para sorrir.

Na escola, eu era a "vendedora". Trazia salgados feitos por mamãe de madrugada, embrulhados em papel branco já manchado de óleo. Os professores compravam, alguns por pena, outros pelo sabor que resistia à humilhação. Eu sabia distinguir os olhares. Os dos colegas, às vezes curiosos, às vezes afiados como facas. A solidão era minha companheira mais fiel — aniversários passados em silêncio, festas da escola das quais eu era espectadora do lado de fora.

Mas tinha o mar.

Do nosso quintal, se você subisse no velho banco de madeira, dava para ver uma faixa de azul entre as casas dos vizinhos. Aquele mar era meu. Ele não ria da minha roupa remendada, não virava o rosto quando eu passava. Ele apenas existia, vasto e livre, e eu me perdia imaginando que, em algum lugar além daquela linha do horizonte, havia um lugar onde uma menina como eu podia pisar na areia com sapatos novos.

Naquela noite, tudo mudou.

Mamãe havia ido trabalhar na casa de uma das famílias ricas do bairro. Volto tarde, exausta, com as mãos marcadas pelo trabalho pesado. Soube depois, pelos murmúrios dos vizinhos, que uma das patroas a humilhara, jogando água gelada nela enquanto a obrigava a limpar o chão de joelhos. Mamãe voltou para casa calada, o orgulho ferido mais profundamente que o corpo.

Papai saiu à procura dela quando a noite já estava escura. Andou de casa em casa, sua voz preocupada ecoando nas ruas de terra batida. Um dos vizinhos, homem bruto e de coração pequeno, fez escândalo. Disse que pobres não deveriam perturbar o sono dos trabalhadores. Outros se juntaram a ele. A discussão virou briga, e papai voltou sangrando, a camisa rasgada, o olhar opaco de dor e vergonha.

Eu estava na cama, frágil de um resfriado que insistia em não ir embora, quando ouvi os passos trôpegos deles subindo a escada. Meus irmãos, inocentes, dormiam. Levantei, tontura à espreita, e fui ao quarto dos pais levar os comprimidos que mamãe guardava para emergências. Eles estavam sentados no chão, ela limpando o rosto dele com um pano úmido, ele tentando sorrir como se nada doesse.

Mediquei-os em silêncio. O copo de água estava vazio. Desci para buscar mais na cozinha, mas a fraqueza e a escuridão conspiraram contra mim. No topo da escada de madeira, escorreguei. O mundo virou de lado, e houve apenas o som do meu corpo batendo degrau após degrau, até o chão frio da sala.

A dor veio depois. Primeiro, o susto nos olhos dos meus pais, que correram para mim. Depois, uma pontada aguda no lado esquerdo do corpo, como se algo dentro de mim tivesse se deslocado para sempre.

Eles me carregaram de volta para a cama. Papai segurou minha mão, mamãe cantarolou uma antiga canção de ninar. Lá fora, a noite era escura, mas se eu fechasse os olhos, ainda podia ver o mar. Azul. Infinito. Livre.

Naquele momento, eu não sabia que aquela queda não era apenas física. Era o primeiro sinal de que alguns caminhos são feitos de degraus quebrados, e que o destino, às vezes, nos derruba antes de nos mostrar a direção.

E eu ainda não sabia de Josué.

Mas o mar sabia.

E ele guardou meu segredo.

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