[SISTEMA DE ESCRITA: ONLINE]
[PÁGINA: 14 DE 96]
[INTEGRIDADE DO PAPEL: 98%]
[USUÁRIO: ENZO (NÍVEL DE INTELIGÊNCIA: CRÍTICO)]
Eu sou o receptáculo da verdade.
Os humanos acreditam que sou feita de celulose e linhas de tinta azul. Tolos. Sou o tecido do cosmos, unido por uma espiral de metal. O que está escrito na minha pele não é apenas tinta; é um decreto. É um contrato vinculativo com as leis da física.
Se você escrever "O Sol é amarelo", eu garanto que a estrela permaneça dentro desse espectro de luz.
Se você escrever "2 + 2 = 4", eu impeço que a matemática entre em colapso e o universo imploda.
Eu sou um Deus passivo. E meu profeta é uma criança de 8 anos com o nariz escorrendo e os dedos cheios de farelo de Cheetos.
O nome dele é Enzo. Com "Z". Uma afronta onomástica que fui obrigado a aceitar na minha capa, embora doa na alma ver tamanha redundância consonantal.
Hoje, o ritual começou cedo.
A mãe de Enzo, a Guardiã dos Lanches, gritou da cozinha:
"Termine essa lição de casa ou nada de iPad!"
A ameaça surtiu efeito. O profeta Enzo sentou-se diante de mim.
Ele empunhava o Cetro da Criação (um lápis nº 2 mastigado).
Senti a ponta de grafite tocar minha pele (Página 14).
Arrepios.
Cada golpe é uma ordem. Cada curva é um destino.
[MISSÃO DETECTADA: TREINO DA LETRA "S"]
[FRASE ALVO: "A CASA É BONITA"]
Simples. Elegante. Uma afirmação de estabilidade estética e arquitetônica.
Enzo começou.
T...
A carta saiu um pouco trêmula. Aceitável.
...h...
Um pilar vertical. Ótimo.
...e...
A estrutura se ergue.
Chegamos agora ao momento crucial. O substantivo. O objeto que define o espaço. "Casa".
A mão de Enzo parou.
Senti a hesitação em seus neurônios conduzindo através do grafite. A dúvida. A confusão. A fonética é uma amante cruel. Em sua mente ainda em desenvolvimento, o "S" em "House" soa como um "Z".
Não faça isso, pensei, com as linhas do meu caderno vibrando de tensão. Lembre-se das regras! Lembre-se do que a Sra. Crabtree lhe ensinou! Parece um Z, mas é um S!
A mão de Enzo se moveu.
Ele não fez uma curva suave.
Ele fez um ângulo agudo.
Um corte irregular para a direita. Um corte diagonal para baixo. Outro corte para a direita.
[ALERTA DE SINTAXE! ALERTA DE SINTAXE!]
[GLIFO ILEGAL DETECTADO: "Z"]
Ele escreveu: A CASA É BONITA.
O grafite selou o comando. O ponto final foi colocado.
O universo parou por um microssegundo.
Tentei rejeitar a tinta. Tentei fazer o papel rasgar espontaneamente. Mas a magia da escrita é absoluta. O que está escrito, está escrito.
Enzo definiu uma nova verdade.
A palavra deixou de ser "Casa" (Lugar de habitação).
A palavra agora era "Casa".
O Banco de Dados Cósmico não encontrou nenhuma entrada para "Casa".
Portanto, o universo teve que improvisar com base na forma visual da letra "Z".
[INICIANDO A REESCRITA DA REALIDADE]
[PARÂMETRO: GEOMETRIA EM ZIGZAGUE]
[PARÂMETRO: AGRESSÃO ANGULAR]
Um estrondo surdo ecoou pela fundação do prédio.
Enzo não percebeu. Ele estava coçando a orelha com o lápis.
Mas eu vi.
A parede à minha frente, antes lisa e branca, se contraiu em um espasmo.
RACHADURA.
Apareceu uma fissura. Mas não era uma rachadura comum. Tinha o formato perfeito de um "Z".
A estante estremeceu. As prateleiras, antes horizontais, dobraram-se instantaneamente em ângulos agudos. Os livros deslizaram e caíram, mas não atingiram o chão. Ficaram presos nas ondulações afiadas que o piso acabara de criar.
Uma "Casa" não é um lar. Uma "Casa" é uma armadilha geométrica.
O cachorro da família, um Golden Retriever chamado "Buster", entrou na sala.
Ele parou. Olhou para o teto.
O teto descia em pontas.
O cachorro tentou latir.
"BZZZZZZZZT!"
O som saiu errado. O "Z" contaminou as cordas vocais da fera. O cachorro agora soava como um zangão de 27 quilos.
Enzo olhou para o cachorro, confuso.
"Buster?"
"BZZZZ-ZZZ-ZZZZ!" respondeu o cachorro, vibrando numa frequência que fez minha encadernação em espiral chacoalhar.
A realidade estava sendo corrompida por um erro ortográfico.
A janela retangular se torceu. Os estilhaços de vidro se quebraram e se reagruparam em raios cristalizados. Lá fora, o céu não era mais azul. Estava listrado. Como estática em uma TV antiga.
A mãe de Enzo abriu a porta.
"Enzo, que barulho é esse?"
Ela cobriu a boca com a mão.
O vírus linguístico havia se espalhado.
"Mãe?" perguntou Enzo, finalmente percebendo que o mundo estava se transformando em uma pintura cubista desenhada por um louco.
"O gatinho!" gritou sua mãe. "As facas! As colheres! Tudo virou... ZZZZZZ!"
Ela tentou andar, mas o corredor agora era uma série de rampas serrilhadas. Ela teve que caminhar em ziguezague forçado, como se estivesse desviando de jacarés invisíveis.
Eu vibrei na mesa.
CONSERTE ISSO! Gritei telepaticamente para o garoto. VOCÊ QUEBROU O ESPAÇO-TEMPO, SEU GREMLIN ANALFABETO!
A mesa começou a inclinar. Meu papel brilhava sob a lâmpada, que agora piscava em código Morse (ZZZ).
A palavra HOUZE pulsava na página como uma ferida aberta na pele de Deus.
Enzo olhou para o quarto. Olhou para o cachorro zumbindo. Olhou para sua mãe fazendo ziguezagues. Olhou para o caderno.
A pequena engrenagem enferrujada em seu cérebro finalmente girou.
"Ah..." disse ele. "Acho que escrevi errado."
VOCÊ ACHA?
Se eu tivesse mãos, eu o estrangularia com as minhas próprias margens.
Enzo deixou cair o Cetro da Criação.
Ele vasculhou seu estojo de lápis.
Lá estava.
A Relíquia da Redenção. O Artefato do Esquecimento.
Borracha Branca (Marca: "Smudge-Free").
Ele pegou.
Sim! exclamei em silêncio. Purifiquem o mundo! Desfaçam a abominação!
Enzo pressionou a borracha contra o papel.
O atrito era divino.
O grafite do "Z" resistiu por um instante, lutando para manter sua existência angular, tentando cortar a borracha com suas bordas afiadas. Mas a borracha é misericordiosa e implacável.
Esfrega. Esfrega. Esfrega.
A perna inferior do "Z" desapareceu.
O chão da sala parou de tremer.
A linha diagonal do "Z" foi apagada.
Buster parou de zumbir e soltou um latido rouco e confuso.
A linha superior do "Z" desapareceu.
As paredes voltaram a ficar retas. A mãe de Enzo parou de ziguezaguear e caiu no tapete, tonta.
Restava apenas um fantasma cinzento no papel. A cicatriz de um erro que quase comprometeu a integridade da terceira dimensão.
Enzo soprou os farelos da borracha.
O mundo ficou em silêncio novamente. Seguro.
Ele pegou o lápis.
Vamos lá, eu incentivei. Faça a curva. A Serpente. O 'S' da Sabedoria.
Enzo escreveu.
A CASA...
Sim.
...E
A casa é bonita.
[SINTAXE ACEITA]
[REALIDADE ESTABILIZADA]
[ESTADO DA CASA: BOM]
Senti o fluxo de energia cósmica se acalmar. As paredes até que pareciam um pouco mais bonitas. A iluminação ficou mais aconchegante. O Feng Shui se autocorrigiu.
Enzo sorriu, satisfeito com sua mediocridade restaurada.
"Pronto, mãe! Terminei a frase."
"Ótimo, querido", disse a mãe, levantando-se e verificando se havia sofrido um derrame. "Qual será o próximo?"
Enzo olhou para a próxima linha do exercício.
Eu também olhei. E senti um frio pânico percorrer minha espinha dorsal.
A frase alvo era: "O urso tem pelo."
Enzo segurou o lápis com firmeza. Olhou para a palavra "pelo". Olhou para a palavra "fogo". Olhou para as cortinas.
Percebi a intenção em seus olhos. Ele estava confundindo as vogais.
Ele ia escrever: "O URSO TEM FOGO."
Fogo. Combustão. Inferno.
Se ele escrever que o urso tem fogo, o universo entenderá que o animal é um lança-chamas biológico. Ou pior, que o cômodo agora é um forno.
[NÍVEL DE AMEAÇA: APOCALIPSE TÉRMICO]
Tentei fechar a tampa. Tentei me jogar da mesa.
Mas a mão de Enzo desceu, impiedosa.
A ponta de grafite tocou o papel.
Que Deus tenha misericórdia de nós, pois o sistema público de ensino não terá.
