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Chapter 4 - Capítulo 3 – A Fera e o Silêncio

O vento soprava suave, levando consigo o cheiro de musgo e terra molhada.Depois de dias viajando entre montes e vales, Lucius e Friaren finalmente haviam alcançado a Floresta de Lorn, uma região antiga onde as árvores pareciam conversar entre si em um idioma esquecido.

Friaren caminhava alguns passos à frente, o cajado improvisado nas mãos, os olhos atentos ao chão."Você está muito quieto hoje", comentou ela.Lucius olhava para o alto, observando a luz que se filtrava entre as folhas. "Estou ouvindo.""Ouvindo o quê?""O mundo. Ele fala diferente aqui."

Ela bufou levemente. "Ou talvez você só esteja com fome."

Lucius riu, um som leve que quebrou o silêncio da floresta. "Não nego."

Apesar da conversa descontraída, havia algo naquela região que o deixava em alerta.As árvores antigas emanavam energia. Era como se cada raiz tivesse uma vontade própria.Lucius podia sentir as intenções — os impulsos primitivos de fome, medo, curiosidade — que permeavam o ar. Não eram pensamentos, mas sensações cruas, como ecos da alma do mundo.

"Essa floresta tem uma consciência", murmurou ele.Friaren olhou de relance. "Você fala como um mago elfo.""Talvez eu só esteja prestando atenção.""Ou talvez esteja ficando louco.""Louco é quem não ouve o que está vivo."

Ela suspirou. "Então metade do mundo é surda."

Lucius sorriu. "E a outra metade, muda."

O caminho levou-os até um pequeno riacho, onde encontraram marcas de sangue fresco.Friaren se abaixou, tocando o solo. "Caçadores... ou presas."Lucius fechou os olhos por um instante, sentindo o ar vibrar."Nem um, nem outro. Está morrendo perto daqui."

Seguiram o rastro até uma clareira coberta por folhas caídas.Lá, sob uma árvore, jazia um filhote de lobo, pequeno demais para estar sozinho.Seu pelo era prateado com reflexos azulados — o brilho típico de criaturas com afinidade dupla.Mesmo ferido, ainda respirava.Lucius se aproximou devagar.

Friaren franziu o cenho. "Não me diga que vai pegá-lo.""Ele ainda está vivo.""E faminto.""Assim como nós."

Lucius se ajoelhou e estendeu a mão. O lobo tentou rosnar, mas o som saiu fraco.Ele pousou os dedos sobre a testa do animal e fechou os olhos.

A alma do lobo era pequena e pura — um fragmento quase transparente de instinto e medo.Lucius sentiu as vozes de outras criaturas ao redor, ecos de presas e predadores mortos há pouco.Gentilmente, ele estendeu a própria consciência, absorvendo fragmentos de almas de pequenos animais que haviam perecido próximos dali — um veado, uma serpente, um falcão.

Ele purificou aquelas essências, removendo o medo, a dor e o desespero.O que restou foram memórias puras: como correr, como caçar, como sentir o vento.

Então, com cuidado, devolveu-as ao filhote.

O corpo do lobo brilhou levemente. Suas pupilas se dilataram, e ele soltou um ganido surpreso, como se tivesse acabado de sonhar com uma vida que nunca viveu.Lucius abriu os olhos, sorrindo."Pronto. Agora você se lembra de como é ser forte."

Friaren o observava em silêncio."Você acabou de dar alma de outros bichos pra ele?""Fragmentos. Instintos. Memórias boas.""Isso é... perigoso.""Talvez. Mas às vezes o mundo precisa de mais lembranças boas do que ruins."

Friaren suspirou e se sentou numa pedra próxima. "Você tem mania de brincar de deus."Lucius riu. "Não. Só de jardineiro."

O lobo cambaleou, deu alguns passos e parou diante dele. Depois, lambeu sua mão."Pronto", disse Lucius, acariciando-lhe a cabeça. "Agora você é parte do bando."

"Vai dar nome a ele?", perguntou Friaren.Lucius pensou por um instante. "Aurus.""Por quê?""Porque mesmo ferido, ele ainda brilha."

Enquanto o sol se punha, eles montaram acampamento sob as raízes de uma árvore imensa.O fogo crepitava baixo. Friaren olhava para o filhote dormindo entre eles.

"Você se apega rápido", comentou ela.Lucius olhou para as chamas. "A vida é curta demais pra não cuidar do que escolhemos amar.""Bonito... e tolo.""Talvez. Mas prefiro ser tolo e sentir algo, do que sábio e vazio."

Friaren desviou o olhar, o rosto suavizado por um instante.Lucius notou o silêncio dela e, após um tempo, perguntou:"Friaren, você quer ficar mais forte?"

Ela franziu o cenho. "O que quer dizer?""Eu posso te ensinar magia e técnicas de guerra. Posso te dar fragmentos de memórias que aprendi — de magos, guerreiros, até de animais. Mas só se quiser."

Friaren ficou em silêncio por um longo momento.O fogo estalava, e o lobo ressonava baixinho.

"Ficar forte pra quê?", perguntou enfim."Pra escolher o que quer ser, sem medo."

Ela o encarou. Os olhos frios de sempre, mas havia um lampejo diferente neles — algo entre curiosidade e dúvida."E se eu não quiser lutar?"Lucius sorriu de leve. "Então aprenda pra não precisar."

Friaren desviou o olhar e se recostou contra a árvore."Você fala bonito demais pra um órfão.""E você reclama demais pra alguém que ainda está viva."

Ela soltou um meio sorriso, breve, quase invisível.Lucius percebeu e decidiu não comentar.

A noite caiu completamente.A lua apareceu por entre os galhos, banhando a clareira em prata.Lucius fechou os olhos, sentindo o fluxo do vento.Em sua alma, o pequeno lobo dormia, e com ele, as memórias dos animais que haviam se tornado parte de algo maior.

Ele não estava construindo apenas poder.Estava tecendo ligações — fios invisíveis entre almas que, um dia, sustentariam seu verdadeiro ideal: a união dos fortes e dos frágeis, dos vivos e dos que se foram.

E naquele silêncio, Lucius sorriu.Porque pela primeira vez desde que chegara àquele mundo... ele não se sentia sozinho.

O amanhecer chegou devagar, tingindo o céu de tons rosados.A neblina se dissolvia aos poucos, e o canto das aves ecoava suave por entre as copas.

Lucius já estava acordado.Sentado sobre uma raiz larga, observava a fumaça do fogo dissipar-se no ar, enquanto Aurus dormia enroscado perto dele.

Friaren se aproximou, ainda sonolenta, ajeitando a manta sobre os ombros."Você não dorme nunca?""De vez em quando. Mas gosto de ver o mundo acordar.""Romântico demais pra alguém que come almas."

Lucius riu baixo. "Eu prefiro pensar que devolvo o que foi perdido."

Ela se sentou ao lado dele, observando o riacho à frente."Você disse que podia me ensinar magia.""Sim.""Então... me ensine."

Lucius olhou para ela por um momento, avaliando a expressão séria no rosto dela."Tem certeza? Magia não é poder. É percepção. Muitos tentam dominar o mundo, mas poucos aprendem a ouvi-lo.""Eu quero entender o mundo antes que ele me engula."

Lucius assentiu devagar."Boa resposta."

Ele pegou uma pedra lisa e a colocou sobre o chão."Tudo começa aqui — no menor fragmento de existência. Magia é o diálogo entre a alma e o mundo. Cada elemento é uma forma de linguagem."

"Então os elementos... falam?" perguntou Friaren."De certo modo. Fogo é impulso. Água é memória. Vento é liberdade. Terra é paciência. Relâmpago é despertar."

Ela arqueou a sobrancelha. "E qual fala comigo?"Lucius sorriu. "Vamos descobrir."

Ele se levantou, caminhando até o riacho."Feche os olhos. Respire. Sinta a água correndo, não apenas com os ouvidos — com o corpo inteiro."

Friaren obedeceu, respirando fundo.A brisa fria tocava seu rosto, e o som da água parecia pulsar em sincronia com o coração.

Lucius se aproximou e estendeu a mão sobre o riacho."Agora, imagine que sua alma é um espelho. Ela reflete o mundo, mas também o molda. A magia acontece quando a reflexão e o desejo se encontram."

Pequenas ondulações surgiram na superfície da água.Friaren abriu os olhos, surpresa."Você fez isso?"Lucius negou com a cabeça. "Você fez. Eu só te mostrei o caminho."

Ela arregalou os olhos. "Mas eu nem tentei!""É aí que mora a beleza. As primeiras vezes sempre acontecem por acaso — como respirar pela primeira vez."

Friaren franziu o cenho, tentando novamente.O riacho tremeu levemente, e uma gota d'água se ergueu por um instante antes de cair de volta.Lucius sorriu. "Não lute contra o mundo. Convide-o a dançar."

Ela cruzou os braços. "Você fala como se fosse poeta.""E você age como se quisesse esconder que ficou impressionada."

Friaren desviou o olhar, disfarçando. "Talvez um pouco."

O lobo Aurus levantou a cabeça, espreguiçando-se. O pelo prateado refletia a luz do sol nascente.Lucius estendeu a mão e acariciou-lhe o focinho."Ele já está mais desperto. Os instintos que dei a ele estão se ajustando."

"Você vai continuar alimentando ele com almas?""Só as de monstros mortos. Nada que mereça pena.""E quando ele for forte o bastante?""Então ele decidirá o próprio caminho."

Friaren observou o animal com curiosidade. "Ele entende o que diz?"Lucius sorriu. "Mais do que parece."

Aurus inclinou a cabeça, soltando um pequeno uivo rouco, quase como resposta.Friaren riu. "Ele acabou de te chamar de mentiroso.""Então já aprendeu demais."

O dia seguiu calmo.Lucius passou horas mostrando a Friaren como "sentir" os elementos ao redor — o calor do sol, o fluxo da água, a vibração da terra sob os pés.Ela aprendia devagar, mas com concentração quase obsessiva.

À tarde, ele desenhou um círculo simples no chão com um galho seco."Este é o primeiro selo rúnico. Não é feitiço. É foco."Friaren inclinou a cabeça. "Parece uma brincadeira de criança.""É. Até você tentar fazer direito."

Lucius tocou o centro do círculo, e faíscas douradas percorreram as linhas.Friaren tentou repetir, mas o traço desmanchou-se sem emitir luz."Você usou força demais", disse Lucius, sorrindo. "Magia é como segurar um pássaro. Aperte demais, e ele morre. Solte demais, e ele foge."

Ela suspirou. "E você fala por metáforas demais.""E você escuta pouco.""Porque suas metáforas são ruins.""Mas funcionam.""Infelizmente."

Quando o sol começou a se pôr, Lucius acendeu o fogo e se recostou na árvore.Friaren, exausta, olhava para as chamas com um olhar distante."É estranho", disse ela, "mas... quando uso magia, sinto como se o mundo me olhasse de volta.""Porque olha", respondeu Lucius. "Cada vez que tocamos o poder, deixamos uma marca. O mundo lembra."

"E ele lembra de tudo?""Do que importa, sim."

Ela ficou em silêncio por um tempo."Então, quando alguém morre... o mundo lembra?"Lucius olhou para o fogo, a expressão serena. "Sempre."

Friaren encostou a cabeça no joelho e murmurou:"Talvez eu também queira ser lembrada, um dia."

Lucius olhou para ela, um brilho suave nos olhos."Você será, Friaren. Nem que seja por mim."

Ela fingiu não ouvir, mas o leve sorriso no canto da boca o entregou.

A noite desceu tranquila sobre a floresta.O fogo estalava, e Aurus dormia encostado em Friaren.Lucius, em silêncio, observava as chamas dançarem, refletidas nos olhos dos dois.

E, pela primeira vez desde que herdara aquele poder, sentiu que devorar almas não era o mesmo que roubar vidas.Talvez... fosse uma forma de mantê-las vivas dentro de algo maior.

A manhã seguinte veio envolta em névoa e serenidade.O orvalho escorria das folhas, e o som das gotas caindo no chão formava um ritmo tranquilo — como o compasso de uma respiração lenta e antiga.

Lucius estava de pé, imóvel, com os olhos fechados.Sua mente flutuava entre o mundo físico e o espiritual, sentindo as correntes de energia fluírem como rios invisíveis ao seu redor.Desde que absorvera as almas do guerreiro e do mago sombrio, sua percepção se expandira a níveis que ele ainda não compreendia totalmente.

Agora, ao inspirar, podia ouvir o eco de cada elemento — o calor do fogo vibrando nas pedras, o peso da terra sob os pés, o sussurro do vento entre as árvores.Mas havia algo mais próximo… um padrão familiar e, ao mesmo tempo, completamente novo.

Ele abriu os olhos e fixou o olhar em Friaren, que treinava um pequeno selo de vento a alguns metros de distância.Ela se movia com concentração rígida, o cabelo prateado preso de qualquer jeito, e o olhar tranquilo como o de quem aceita o próprio silêncio.

Lucius falou suavemente:"Friaren... posso tentar algo?"

Ela levantou uma sobrancelha, desconfiada. "Depende. Vai doer?""Não. Só preciso... escutar sua alma."

Ela hesitou por um instante, mas acabou assentindo."Tudo bem. Mas se sentir algo estranho, vou te dar um soco."Lucius sorriu. "Justo."

Ele se aproximou, estendendo a mão.A ponta dos dedos tocou levemente o ar à frente do peito dela — sem contato direto, mas próximo o suficiente para sentir a vibração sutil que emanava do corpo.

Então, ele mergulhou.

Sua consciência afundou na presença de Friaren como quem mergulha em um lago tranquilo.E ali, ele viu — não com os olhos, mas com a alma.

Três correntes de energia serpenteavam ao redor dela, dançando como fitas de luz.Uma delas era azul-prateada, fluida e gentil como a água que nunca se cansa de fluir.A segunda, dourada e selvagem, estalava com o brilho cortante de um relâmpago que jamais se repete da mesma forma.A terceira, translúcida e inquieta, ondulava como o vento antes da tempestade.

Aquele espetáculo silencioso o deixou sem fôlego.

Quando voltou a si, Friaren o olhava com impaciência."E então? Descobriu que sou normal demais?"Lucius respirou fundo e respondeu com voz baixa:"Normal é a última palavra que eu usaria."

Ela piscou. "O que isso quer dizer?""Você tem três afinidades elementares. Duas delas são super — Relâmpago e Vento. A terceira, Água, é de nível elevado. Isso é... extremamente raro, mesmo entre magos prodígios."

Friaren cruzou os braços. "Então eu sou um tipo de aberração.""Não. Você é... harmonia em movimento."

Ela o encarou, confusa. "Isso é bom ou ruim?""Depende. Com Relâmpago e Vento, você tem o poder de destruir em instantes. Mas com Água, você tem a capacidade de curar. Você é... o equilíbrio entre fúria e compaixão."

"Equilíbrio? Eu?" Friaren riu de leve. "Você definitivamente está me confundindo com outra pessoa."

Lucius sorriu. "Talvez. Ou talvez ainda não tenha se olhado direito."

A conversa foi interrompida por um pequeno ruído.O lobo Aurus se aproximou deles, farejando o chão e abanando a cauda.Lucius se abaixou, coçando-lhe o pescoço. "Ele está inquieto. Deve ter sentido o mesmo que eu.""O quê?" perguntou Friaren.

Lucius ficou em silêncio por alguns segundos, a expressão séria."O ar está diferente. Há um campo de energia antiga aqui... como se algo estivesse adormecido por muito tempo."

"Você acha que é perigoso?""Tudo que dorme há tempo demais... acorda com fome."

Durante o resto do dia, eles avançaram com cautela, Lucius guiando-os com sua percepção.Ele usava a energia da alma para mapear o ambiente, e em cada batida de seu coração podia sentir as correntes elementares se curvando ao redor — como se o mundo respondesse à sua atenção.

A cada passo, Friaren o observava em silêncio.Ela notava que ele não se movia como um mago, nem como um guerreiro.Era algo diferente — um equilíbrio entre calma e propósito, como se cada gesto fosse calculado por um instinto ancestral.

Em certo momento, ela quebrou o silêncio:"Lucius... quando você olha pro mundo desse jeito... o que sente?"

Ele demorou um pouco para responder."Sinto que tudo tem voz. Mesmo o que chamamos de silêncio.""E o que o silêncio diz?""Que a vida sempre busca ser ouvida."

Friaren abaixou o olhar, pensativa. "Você fala bonito demais pra alguém que devora almas."Lucius riu. "E você fala como quem finge não entender o que sente."

Ela bufou, mas não respondeu.

Ao cair da noite, eles pararam à beira de um lago cristalino.Lucius acendeu uma pequena fogueira e olhou para o reflexo das estrelas na água.Aurus deitou-se ao lado, os olhos atentos ao horizonte.

"Você percebeu, não foi?" perguntou Lucius."O quê?""O relâmpago dentro de você. Ele não é apenas poder... é um chamado. Quando ele despertar por completo, nada voltará a ser o mesmo."

Friaren olhou para as chamas."Então é melhor eu aprender a controlá-lo antes disso."Lucius sorriu. "E eu estarei aqui pra garantir isso."

Ela respirou fundo, deixando o som do vento atravessar os cabelos."Por quê?""Porque ninguém deve caminhar sozinho quando o mundo começa a ouvir."

A fogueira crepitava, e o som da floresta envolvia os três em um silêncio profundo.Aurus levantou a cabeça, uivando baixo — um som que parecia ecoar não só nas árvores, mas nas almas deles.

Lucius olhou para Friaren e pensou, com uma calma que não sabia explicar:O destino começa a se mover.

E pela primeira vez, ele sentiu que não era o único com uma alma que podia mudar o mundo.

A noite caiu silenciosa sobre a floresta, e a lua, quase cheia, derramava luz prateada sobre o lago.Lucius terminava de reforçar o pequeno acampamento, enquanto Friaren, alguns metros à frente, ainda insistia em treinar o controle do relâmpago.

A cada tentativa, o ar crepitava.Faíscas dançavam em torno de seus dedos, mas se dissipavam antes de formar um feitiço completo.

Lucius observava, atento, mas sem interferir.Havia algo diferente naquela energia — mais viva, mais selvagem.Ele sentia o relâmpago reagir não à magia dela, mas à própria presença de sua alma.

"Friaren, talvez seja melhor parar por hoje," disse ele, com a voz calma, mas firme."Não. Está quase," respondeu ela, os olhos fixos nas faíscas que se formavam em volta das mãos."Você está forçando demais a alma.""Eu sei o que estou fazendo."

Lucius suspirou, mas permaneceu em silêncio.O vento mudou de direção.A energia do ar pareceu engrossar, como se a própria floresta prendesse a respiração.

Friaren fechou os olhos.O relâmpago percorreu-lhe os braços, subindo pelo corpo, e então algo quebrou dentro dela — uma barreira invisível, rasgada pelo instinto.

Um som abafado preencheu o ar.O chão vibrou.A luz explodiu.

O corpo de Friaren foi tomado por descargas elétricas, tão intensas que o ar ao redor começou a distorcer.Seus olhos se abriram, completamente dourados, e uma marca brilhante surgiu em sua pele — um padrão em espiral, como um selo antigo.

Lucius sentiu o impacto na alma.Aquilo não era magia.Era um talento inato, um dom que vinha do âmago da existência — poder puro, indomável, sem fórmulas, sem runas, sem palavras.

"Friaren!"Mas ela não ouvia.O relâmpago rugia em volta dela, como uma fera viva, devorando o ar e rasgando o céu.

Lucius agiu instintivamente.Estendeu a mão e lançou sua consciência adiante, mergulhando na corrente elétrica como quem mergulha em um mar de espadas.A dor foi imediata — um choque atravessou sua alma, queimando cada fibra de sua mente.

Mas ele não parou.Usou sua própria energia espiritual para envolver a dela, guiando o caos para dentro de um ciclo controlado.Ele não poderia conter o relâmpago — mas podia dar-lhe forma.

Friaren gritou.A descarga final subiu para o céu, rompendo as nuvens e iluminando a floresta inteira.O som foi ensurdecedor — e depois, silêncio.

Quando o clarão se dissipou, ela caiu de joelhos, ofegante, os olhos voltando ao tom natural.Lucius cambaleou, apoiando-se em uma árvore.Fumaça subia do chão onde o raio havia tocado.

"Eu... o que foi isso?" murmurou ela, tremendo.

Lucius respirava com dificuldade."Um talento inato... o relâmpago do despertar. Não é magia comum. É a alma se manifestando no mundo."

Ela olhou para as próprias mãos, onde pequenas faíscas ainda dançavam."Eu quase... me destrui.""E teria, se não tivesse alguém para te puxar de volta."

Friaren levantou o olhar. "Você se machucou?"Lucius abriu a palma — havia uma marca negra ali, como uma cicatriz de energia, ainda pulsante."Um pouco. Mas ganhei algo em troca."

Ela o observou em silêncio, até que o ar estalou novamente — o som distante de árvores se partindo ecoou ao longe.A energia do relâmpago havia despertado criaturas adormecidas.

Lucius olhou para Aurus, que já rosnava baixo, os pelos em pé."Hora de sair daqui."

A fuga começou antes que o primeiro rugido ecoasse.Eles correram entre as árvores, guiados por Aurus, que se movia como uma sombra prateada na noite.Lucius sentia o corpo pulsar — parte da energia do relâmpago ainda vibrava dentro dele, reagindo ao movimento.

Cada respiração parecia fortalecer seus músculos.Cada batida do coração fazia o ar à sua volta ondular.

Então é isso... pensou. O relâmpago não destrói — ele desperta.

Enquanto avançavam, Lucius começou a sentir algo diferente — um fluxo interno, quente e sólido, correndo pelos meridianos do corpo.Era o Douqi, a energia vital, respondendo ao toque do relâmpago.

Ele compreendeu, naquele instante, que podia cultivar o corpo com a mesma intensidade com que cultivava a alma.Era o nascimento de um novo caminho — o equilíbrio entre o físico e o espiritual.

Depois de horas de corrida, encontraram refúgio em uma pequena caverna coberta por musgo.Friaren, exausta, adormeceu ao lado de Aurus.Lucius permaneceu acordado, sentado à entrada, observando a chuva cair lá fora.

Ele abriu a mão novamente — o símbolo negro ainda pulsava, mas agora emitia um brilho suave, como se respirasse junto dele.

"Relâmpago..." murmurou. "Você me feriu, mas também me mostrou o caminho."

Fechou os olhos e começou a respirar devagar, guiando a energia pelo corpo.A dor desapareceu, substituída por uma sensação de expansão.Ele sentia o corpo e a alma trabalhando juntos — um ciclo de força que alimentava a si mesmo.

Do lado de fora, o trovão ressoou distante, ecoando pela floresta.Lucius abriu os olhos e sorriu.

"O som da tempestade..." sussurrou. "O som do renascimento."

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